quinta-feira, 18 de março de 2010

P.S. para o artigo O Roubo é nosso!

Mal publiquei este artigo, vejo na Internet a seguinte notícia:

'Congresso que resolva problema' dos royalties, diz Lula
Agência Estado - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou hoje, na Jordânia, que não vai interferir na decisão do Senado sobre a partilha dos royalties da produção de petróleo na camada pré-sal.

Ou seja, já não corro mais o risco de queimar minha língua quanto à opinião que manifestei sobre o papel de Lula nesse caso da emenda Ibsen. Infelizmente.

O Roubo é nosso!


No país da criminalidade impune, das grandes fortunas e patrimônios inexplicáveis exibidos à vista de todos, roubo pode se converter em lei. Lei do mais forte, lei da selva: only the strong survive; os mais fortes, e os mais espertos, os mais imorais, os mais cínicos.

O Rio de Janeiro, que produz 85% do petróleo nacional, fica hoje com 45% das participações governamentais, na forma de royalties e participações especiais. Destaque-se que estes royalties e participações foram estabelecidos para compensar as perdas decorrentes de o estado produtor não poder cobrar ICMS sobre o petróleo. Todos os outros produtos têm ICMS na origem, só o petróleo tem o imposto no destino. Com isto, o Rio perde por ano R$ 8,6 bilhões, que vão engordar o caixa dos estados consumidores. Com royalties e participações, o Rio recebe R$ 4,9 bilhões. Diferença de R$ 3,7 bilhões, bagatela.

Mas vai ficar melhor: dos R$ 4,9 bilhões atuais, a emenda Ibsen vai deixar R$ 100 milhões. Nova perda, desta vez de R$ 4,8 bilhões, mixaria.

Lembremos que os royalties/participações, além de compensar (nem tanto, como vimos) perdas de arrecadação do ICMS, também servem para indenizar os locais produtores de problemas ambientais, crescimento populacional exagerado, demandas às administrações públicas locais, e ainda para ajudar estes locais a se preparar para o futuro, sendo o petróleo um recurso natural não renovável. Um exemplo concreto, colhido na edição do Jornal Nacional de 11.03.2010, ajuda a esclarecer o argumento: a cidade de Macaé, no Rio de Janeiro, centro recente da exploração do petróleo. Vamos ao que diz a reportagem:

“A economia de Macaé cresceu 600% nos últimos dez anos e a população triplicou. Com o crescimento, surgiram novos problemas e responsabilidades: aumentou a demanda por energia e transporte, os sistemas públicos de saúde e educação tiveram que ser ampliados e o fantasma de acidentes ambientais provocados pela exploração do petróleo exigem cuidados e investimentos permanentes.

Com a mudança na distribuição dos royalties, Macaé deixaria de receber R$ 345 milhões por ano e ganharia pouco mais de R$ 3 milhões.” O link da reportagem completa é http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL1526050-10406,00-NOVA+PROPOSTA+PARA+PRESAL+DESAGRADA+PRODUTORES.html

Deu pra sentir o drama? A alegação de que o Rio de Janeiro é privilegiado em relação aos outros entes da Federação tampouco se sustenta. Conforme o especialista em planejamento urbano, Mauro Osório, “se efetivamente olharmos a relação receita pública/PIB nas unidades federativas, veremos que o Rio não está acima da média. Se perdermos os royalties, ficaremos em torno de 13% abaixo da média. Ou seja, não somos privilegiados atualmente e passaríamos a ser prejudicados”.

Mas pra que discutir números, argumentos? Muitos não querem de modo algum se dar ao trabalho de estudar o assunto, mas não se escusam de dar sua opinião, inclusive com veemência, baseados em algum slogan que lhes sopraram, e que lhes parece tão justo: o petróleo para todos os brasileiros!; as riquezas devem ser divididas! O Rio de Janeiro precisa ser solidário!, alguma frase-feita, lugar-comum, que evoque velhos preconceitos, e livre do trabalho de pensar. Dane-se que os custos da exploração se concentrem no Rio! Os lucros têm de ser divididos... quanto aos minérios que beneficiam Minas, ou o Pará, não precisa dar qualquer parte disso pro Rio... a questão é só o petróleo, afinal, 85% dele estão no Rio...

Os autores da Lei do Roubo, deputados Ibsen Pinheiro (PMDB – RS) e Humberto Souto (PPS – MG) dão-se ao luxo de fazer blague com a bancarrota de um dos estados da Federação: para o primeiro, o Rio já é compensado pela sua vista privilegiada para o mar; para o segundo, “todo o minério que for encontrado no mar territorial de Minas Gerais também pode ser dividido”. É o nosso nível de argumentos, de Justiça, de seriedade...

Na verdade, não se trata de uma questão de argumento, e não se trata de uma questão de Justiça. Tudo passa por uma questão de força: as maiorias no Congresso olham com olho guloso os rendimentos do Rio e do Espírito Santo, principais prejudicados pela emenda Ibsen. O “cara” dos 80% de aprovação popular já tinha soltado há tempos no ar a idéia de juntar 24 estados pra currar os outros dois. Grande idéia, em ano eleitoral, distribuir uma graninha pra um monte de prefeituras pelo país, deixar muita gente contente pra votar no Governo. Tudo decidido DEMOCRATICAMENTE no nosso Congresso, afinal, foi a maioria que decidiu.

O que nos traz de volta à questão filosófica: porque é lei, ou porque é votado pela maioria, pode legitimar o roubo? Ou o roubo continua sendo roubo, mesmo que vestido e maquiado com a melhor aparência?

A maioria, então, pode fazer o que bem entende? E o respeito aos direitos das minorias, onde fica? O direito natural, o direito fundamental, como quiser chamá-lo. Para os totalitários, invocar tais direitos é romantismo, estupidez, ou algo que o valha. Para eles, vale a lei da força. Pelo menos, enquanto são eles os beneficiados. O ruim (ou o bom), é que nos regimes totalitários, muitas vezes aquele que está usufruindo das vantagens ilícitas hoje pode ser aquele que vai sofrer na carne uma injustiça amanhã. É a lei da selva, o predador de hoje é a presa de amanhã.

E é isto que vivemos no nosso Brasil varonil, um sistema de força, uma lei da selva, um regime que flerta com o desrespeito aos direitos das minorias, e portanto, com o totalitarismo. Políticos espertos, malandros velhos, no nosso sistema eleitoral viciado e desequilibrado, em que um voto em determinado local vale 10 votos de outro local, e coisas assim, em que DINASTIAS SE MANTÊM SEMPRE NO PODER, SEMPRE RIQUÍSSIMAS, EM ESTADOS COM ÍNDICES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE TRIBOS AFRICANAS, dão as cartas e fazem o que querem. Até legalizar o roubo eles podem. Só não podem tornar o roubo legítimo. Mas isto é uma discussão filosófica, no país dos últimos lugares em avaliações internacionais de estudantes pouco importa. Importante são as burras cheias de dinheiro. E os burros pastando... devem achar tudo normal, tudo democrático, afinal contaram os votos... só que democracia em que a maioria faz qualquer coisa, faz o que bem entende, desrespeita direitos individuais, direitos de minoria, legaliza o roubo, simplesmente não é democracia. Democracia tem de respeitar e preservar as liberdades de todos, ou então é engodo, mentira, logro, putaria. Democracia não é só contar voto, democracia é defender o HOMEM, A DIGNIDADE DO HOMEM, A LIBERDADE DO HOMEM! Deve a democracia servir ao homem, ou deve o homem servir à democracia?

Vamos que cinco homens e uma mulher, numa ilha deserta, votem para decidir se podem ou não estuprar a mulher. E o resultado da votação seja cinco a um pro SIM. Cumpre à mulher aceitar DEMOCRATICAMENTE o estupro? A violência teria se transmudado em consentimento? Talvez no 1984 Orwelliano, com seu Ministério da Propaganda repetindo: “Paz é Guerra! Liberdade é Prisão!”, e outros lemas de pesadelo.

Estou brincando? Então as leis que segregavam os negros, votadas pelas maiorias WASP, também não tinham qualquer problema? Ou as leis votadas pelas maiorias de “arianos puros”, que segregavam os judeus, também seriam democráticas?

E agora o Governador Sergio Cabral se descabela, chora, esperneia, diz que estão fazendo uma covardia com o Rio... e cadê o amigão Lula? A emenda Ibsen foi aprovada na Câmara com grande apoio da bancada governista. Fosse pra livrar a cara de Sarney, Lulinha moveria mundos e fundos, muitos fundos, faria Senador revogar o irrevogável... mas Lulinha ia querer desagradar tantos prefeitos, tantos aliados, e logo em ano de eleição? Ora, sacrifique-se o Rio, somos espertos mesmo, e estamos por cima da carne seca... na hora da festa, estamos aí, vamos curtir Olimpíadas, Copa do Mundo... aproveitem bastante estes eventos, cariocas, pra não sentir muito quando te esfolarem a pele!

Lulinha já tinha mostrado o bem que queria pro Rio: mudou o sistema de concessão para o de partilha na operação do pré-sal. Com isso, o governo federal passaria a reter 80% dos lucros da exploração do pré-sal, fazendo com que os estados produtores amargassem o fim das participações especiais e a redução dos royalties. Cabral engoliu o sapo barbudo quieto, afinal, era um bem futuro que se deixaria de ganhar... mesmo sendo uma injustiça. Mas Lulinha, O Cara, o Nosso Guia, soprou no ouvidinho de Cabral que iam-se os anéis, ficavam os dedos... o gênero da escolha proporcionada pela bandidagem: “A bolsa ou a vida!”. Uma escolha, tá certo, não é propriamente livre... mas agora os nobres representantes do Congresso resolveram imitar o exemplo d´O Cara, e avançaram até sobre a renda que já integrava o patrimônio dos municípios do Rio. Com grande apoio da bancada governista, como dito. E O Cara? Tá atravessando o Atlântico e o Mediterrâneo pra ir pisar no vespeiro das relações entre palestinos e israelenses... quem sabe não esteja mirando um Nobel da Paz, ele e seus bajuladores...

Lulinha pode mesmo comemorar o gosto doce da vingança: “num vaiaram eu no Maracanã? O cara, o maior presidente da História deste país... agora guenta!”

Mas ainda falta esperar pra ver se a emenda Ibsen vai passar no Senado, e se Lulinha vai vetá-la, e se o veto não vai ser derrubado... este é um dos casos em que se torce pra queimar a língua, e a reação firmemente contrária da população carioca pode ter o seu peso nesse jogo. A conferir.

E também não se discute que os recursos provenientes do petróleo, assim como todos os outros recursos do país, poderiam ser muito melhor empregados, pra atender as reais necessidades da população. Mas isto dependeria de argumentação séria e motivos honestos dos nossos representantes, artigos que, pelo visto, não estão exatamente sobrando na nossa vida pública...

Mas isto já é uma outra discussão, longa discussão... fica pra uma(s) próxima(s).


Obs. Para este artigo, vali-me de muitas informações das colunas do Merval Pereira, dia 13.03.2010, e de Miriam Leitão, dia 14.03.2010, ambas do jornal O Globo.