É interessante ver que às vezes é até possível ser marxista, pelo menos no sentido de compartilhar algumas das opiniões do velho Marx, o Karl, o mais nonsense dos irmãos Marx. Aqui está o que diz Karl, em A luta de classes na França:
As enormes somas que passavam pelas mãos do Estado davam, além disso, oportunidade para fraudulentos contratos de fornecimento, corrupção, subornos, malversações e ladroeiras de todo gênero
Eu posso até ser marxista neste trecho, mas eu imagino como terá marxista de carteirinha, de bóton na lapela, se surpreendendo e se assustando com os malabarismos mentais que terá de fazer para adequar seus pensamentos ao do GRANDE MESTRE.
Pois é. A ordem para a esquerda que tem Marx por grande profeta é hoje a de aplaudir o gigantismo estatal. Atende bem aos reclamos da burocracia, sempre ávida por empregos em que o patrão dá muito e exige pouco; empregos a que podem aspirar mesmo sem ter talento ou aptidão; basta ser amiguinho/parente/amante de um “Sinhô do Governo”, pra garantir uma sinecura. E pode rolar uma “transação cruzada”, um “troca-troca”, entre os Sinhôs do Governo, do tipo: “eu dou uma vaguinha no meu Gabinete pro seu parente, você dá uma vaguinha na sua Fundação prum parente meu”. Bem isso que aparece todo dia escancarado nos jornais, e que o coleguinha Marx descreveu: “oportunidade para fraudulentos contratos de fornecimento, corrupção, subornos, malversações e ladroeiras de todo gênero”. Mas os muitos votos que têm todo o interesse de gozar privilégios, dolces far nientes, precisam ser adulados, para que se possa galgar posições de poder; então, toca a dar nomes bonitos pro gigantismo estatal, vamos dizer que é uma questão de Soberania, e Patriotismo, e Direitos dos Trabalhadores, e que quem não enxerga isso é um neo-liberal direitista, um terrível fascista, ou traidor da Nação, inimigo do Povo, nazista... nomes feios, ofensas, sem qualquer conteúdo, usados apenas para impedir qualquer debate.
Porque se pudesse haver um debate, é claro que se enxergaria que o diagnóstico de Marx está correto: muito dinheiro circulando no Estado, é igual a muitas fraudes e corrupções, “ladroeiras de todo gênero”. E isto não seria aceitável por um povo livre e consciente, e teria de mudar. Como? Encerrando com tantas oportunidade de “negócios”, feitos pelo Estado e seus operadores.
Estado tem de ter indústrias, comércios, serviços de todo gênero? Estado tem de fazer pão, telefone, camisa, prego, computador, estádio de futebol? A esquerda parece marcar um “sim”, para todas as opções anteriores. Seu ideal é um mundo “sem ganância”, de funcionalismo e burocracia, todos ganhando pouco, fazendo pouco, sendo pouco avaliados...
Curiosamente, este “marxismo” que não segue Marx, de defender estatismo, combina perfeitamente com nosso velho e arraigado patrimonialismo, em que nossos “donos dos poderes”, governantes, legisladores, altos funcionários, estão acostumadíssimos a fazer o que bem entendem com os dinheiros e os direitos do povo. Tratam a coisa pública como se fosse propriedade particular deles. Fazem leis que agridem explicitamente direitos individuais, com a maior desfaçatez. Vale qualquer demagogia para ganhar aplausos e votos. Ainda mais quando os sacrifícios são alheios. Fazem leis para dar “meias-entradas”, estacionamentos “de grátis”, “contribuições” “sociais” disso e daquilo, e tantas outras.
Além disso, fazem as nomeações que bem entendem, colocam semi-analfabetos para presidir estatais, hospitais, escolas, universidades, garantem-se as mais generosas aposentadorias, planos de saúde, policias para fazer segurança particular...
Além, é claro, das muitas oportunidades, tantas mais quanto mais o Estado se espalha ocupando espaços que pertenceriam à iniciativa privada.
Tudo isto, eu dizia, faz parte de nossa tradição patrimonialista, de termos um “senhor” a quem pertence tudo, e sermos uma multidão a quem compete calar a boca, acatar qualquer capricho do “senhor”. Não temos direitos e deveres, em suma; temos de “puxar o saco”, cair nas graças de quem, por seu capricho e alvedrio, pode nos dar uma “colocação”. Claro, se amanhã este grande benfeitor nos pedir um favor, iremos “cordialmente” nos desdobrar para atender; até porque não queremos perder nosso cargo “de confiança”, “de livre provimento e exoneração”. E acima de tudo, seguir a lei do silêncio, como na Máfia. Nas relações de “camaradagem”, o pior pecado é dar com a língua nos dentes.
Ou seja: o compromisso não é com a abstração do Estado e suas leis. O compromisso é com o muito concreto “dono do poder”, que pode dar e retirar benesses ao seu alvedrio. Sem prestar contas pra ninguém, como se aquilo não fosse do público, fosse deles; “obrando” pra opinião pública, porque a opinião pública não lhes pode retirar do Poder; eles sabem manter seus “nichos”, seus “currais” eleitorais, sabem manobrar as confusas leis em benefício próprio, mudam domicílios eleitorais, entram de suplente, arrumam grandes financiadores pras campanhas... e um povo sem estudo é um povo sem defesa, e as Cortes do país nunca conseguem segurar o peixe grande... “Você sabe com quem está falando?”
Então, uma “filosofia”(bota bastante aspas neste “filosofia”) política que defenda um maior avanço do Estado em todas as áreas, e estigmatize com um monte de nome feio quem se atrever a levantar objeções, vai aumentar ainda mais os poderes destes velhos patrimonialistas bem instalados nos postos de comando de nossa sociedade, e logicamente vai ser recebida por eles com sorrisos francos e braços abertos. Eles vão até poder dizer: “Ora, mas é isto o marxismo, o socialismo? Mas então eu era marxista e não sabia”. Bem que costumam dizer que o socialismo é o neo-patrimonialismo.
Aliás, também curiosamente, o socialismo “real”, isto é, conforme se instalou historicamente nos Estados em que grupos ditos seguidores de Marx se alçaram ao Poder, representou justamente a vitória maior deste estatismo descontrolado. Acabaram com muitos empresários, com muitos proprietários, em fuzilamentos e campos de confinamento. Seguiram fielmente o receituário de Marx, não mostrando piedade pelos inimigos “de classe”. Mas aí, não se deu aquela mágica prometida pelo “profeta” barbudo: não raiou um novo Homem, numa nova Era, em que o Estado sumiria, e sumiria a “exploração” ao som de “Imagine”. Foi um Apocalipse sangrento, escatológico, mas sem Redenção. O homem soube matar, mas não soube ressuscitar.
De novo, o que se viu foi que na Rússia, pátria primeira do socialismo histórico, aquele discurso novo de Marx, aquela promessa de fim da luta de classes, serviu para re-legitimar velhas práticas tirânicas. Como faziam os Czares históricos, o exemplo paradigmático sendo Pedro, o Grande, o povo russo servia de argamassa para a construção do sonho do Governante.
Pedro queria modernizar a Rússia, aproximá-la da Europa Ocidental. Entrou em confronto com os costumes de seus súditos, obrigou-os a raspar a barba; e arregimentou milhares de trabalhadores para suas grandes obras de modernização, deslocando-os de seus lares, afastando-os de suas famílias, literalmente forçando-os a trabalhar para realizar os seus sonhos.
Nada de diferente do que fizeram Lenin e Stalin, apenas que com os socialistas o discurso de justificativa era outro. E o pior é que este novo discurso, este novo ideal de “refazer o homem”, e atingir um “fim da História”, uma superação das contradições, um absoluto, incendiou as imaginações, e deu novo fôlego para tirania, justamente quando seu velho alicerce, o Czarismo já dava sinais de caducar e ruir.
Agora, esta nova promessa justificava novos radicalismos, extermínio de “inimigos”, “trabalhos forçados” para construir a Nova Pátria do Futuro, a mãe-Rússia, com seu “destino histórico” de liderar e conduzir os outros povos. E tome guerra, quente ou fria, para espalhar esta dádiva que é o comunismo, para outros povos.
Agora que estamos afastados no tempo, podemos ver com melhor perspectiva os resultados de tão grandes sacrifícios e aspirações; é engraçado, mas parece que não veio nenhuma Grande Voz do céu( de Deus? De Marx? De Lenin?) para avisar que a dona História chegou na última estação e resolveu parar. Cansou, entregou os pontos, rendeu-se à super mente científica de Marx, que lhe desvendou os mistérios.
Nada disso aconteceu. Está certo, a União Soviética passou um tempo dominando sobre diversos povos, e alcançaram alguns notáveis avanços, principalmente no fabrico de armas, e ainda conseguiram lançar uns satélites. Mas será que foi a doutrina socialista que proporcionou isso?
Parece mais é que estes foram os resultados de se forçar uma grande parte do povo a cumprir certos objetivos eleitos pelos Governantes. Como as grandes obras de Pedro, ou como as pirâmides dos Faraós. Em todos os casos as conquistas foram feitas pela população numerosa, industriosa, capaz, e com os recursos de terras, matérias-primas, riquezas, à disposição.
Claro que a História não admite suposições. É inútil tentar responder “o que aconteceria se”; o que aconteceria se o Brasil tivesse sido colonizado pelos ingleses; ou pelos holandeses; ou pelos chineses; ou por extra-terrestres?
Mas ainda assim, é lícito especular: se os Governantes russos, ao invés de tiranizarem e desperdiçarem a energia de seu povo em cruéis e inúteis guerras, e dominações, e na busca desta utopia socialista, e se concentrassem apenas em oferecer uma boa educação para as multidões de analfabetos, e respeitassem direitos individuais dos governados, e lhes respeitassem a liberdade de votar as leis, e de empreender, de escolher um trabalho, e a maneira de ganhar dinheiro, a maneira de viver, em suma, será que este grande povo, com estes grandes recursos, não iria alcançar tanto, ou mais, do que os esfarrapados ganhos depois de décadas de socialismo?
Estas décadas de socialismo tiveram um custo muito grande e concreto, traduzido em milhares de vidas assassinadas, ou encarceradas em gulags, indivíduos cujo crime foi não concordar com a doutrina que os governantes impunham.
Claro, pode-se afirmar que a História russa tinha de ser desse jeito, que foi apenas o desdobramento de antiquíssimas tradições, que a tirania, a obediência, a ausência de crítica, eram todo o horizonte da maioria do povo russo, e que nenhum regime diferente daquele que Lenin implantou teria funcionado para a Rússia. De fato, a História aconteceu deste jeito, e não pode ser mudada. Mas eu não estou lamentando que poderia ter sido diferente, estou apenas dizendo que o socialismo não vale a pena. Suas pretensas conquistas podem ser melhor alcançadas simplesmente valorizando a educação e as liberdades de um povo, como demonstraram sobejamente povos de população e território reduzidos, com poucos recursos, mas que se destacaram imensamente por suas realizações. Lembremos, sem nos alongar, dos ingleses, durante o século XIX, e dos gregos, no século V a.C.
As grandes realizações do socialismo real são ótimas para fins de propaganda, enchem os olhos de quem está de fora, mas não representam um acréscimo de qualidade de vida para o povo que as produz. Um satélite em volta da Terra, uau! Bomba atômica, que lindo! Não sei quantas nações subjugadas pelo Grande Urso Soviético, que grandeza!
Mas um povo triste, afundado em vodka, sem gêneros básicos, que não pode criticar, que não pode querer mudar... perdendo vidas em guerras, com medo de polícias secretas... um povo deformado e infantilizado pela dependência em relação ao Estado. E, afinal, é a qualidade de vida que importa. Por algum tempo o homem pode abrir mão de todo conforto, e até dos seus sentimentos, da sua capacidade de enxergar a realidade, da sua faculdade de crítica, em prol de um ideal que lhe absorva. Mas com o tempo, vendo nunca chegar o tal futuro brilhante prometido, e, pior, vendo que aquele mesmo ideal apenas justificava imobilismo e injustiça, não mais se consegue manter os corações e mentes presos àquele ideal.
É incrível como isto acontece, de uma noite para o dia, de uma geração para outra, de repente tudo aquilo que parecia tão sólido, se desmancha no ar! Num dia parece toda a realidade, por toda a eternidade! No outro dia, toca-se com um dedo naquilo, e aquilo virou pó e desaba... mas, infelizmente, os muitos executados, os muitos desaparecidos, durante aquele tempo em que o velho ídolo parecia com a divindade, estes não voltam...
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
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