
Ora, quem diria. Depois
da carga inesgotável de chuva, o céu fechado da manhã se tornando
aguaceiro da tarde, agora uma bela lua surgia colorindo de prata as
nuvens esparsas. O ex-coronel registrou racionalmente o pitoresco da
paisagem. Aquilo devia ser belo, sem dúvida, mas a visão de um
grande cachorro parado na rua trouxe uma nota de inquietação aos
pensamentos do ex-coronel. Sem perceber, apertou o braço para sentir
o volume da arma em um coldre atravessado no seu peito.
Agora, o cachorro se
moveu, abrindo passagem, e o ex-coronel se apressou em tomar o outro
lado. Com alívio, refletiu como era importante não demonstrar medo,
quando em situação de perigo. “Ainda bem que este cachorro não
veio pra cima de mim”.
E pelas ruas desertas o
ex-coronel apertava o passo. Queria chegar logo ao conforto do lar,
não conseguia passear tranquilo. Ainda mais à noite. Ainda mais
pelas ruas desertas.
Acendeu um cigarro,
tragando fundo, e sentindo a nicotina abafar seus nervos agradecidos.
O fôlego não andava bom, mas isso agora não importava. E o
ex-coronel devaneou para um tempo em que era o chefe da divisão de
torturas do exército. Temido e odiado, mas naquela época ele tinha
poder. E quem é que mexeria com ele, sabendo o que ia lhe acontecer?
40 anos que se
passaram, e sumiram como um sonho... e como se esgotara depressa,
toda aquela confiança... naquele tempo, os militares é que tinham o
poder, eram eles que mandavam... decidiam, e as coisas aconteciam.
Vidas e vidas, e algumas ilustres, se acabaram por aquela força que
ele tinha nas mãos...
Ver os prisioneiros
chegando para os interrogatórios, alguns assustados, alguns
arrogantes, mas mesmo estes nervosos, anotar seus pertences, um
paletó, uma gravata, meia dúzia de livros... E então, a salinha, a
surpresa, o horror, a descrença, quando o primeiro soco reverberava,
arrancando alguns dentes... 3, 4, 5, chutando as costelas, pisando
com a bota na cara. E às vezes algum instrumento, algum choque
elétrico, corpos amarrados que se convulsionavam, e os gritos de
raiva, os gritos de desespero, os gritos de dor...
Quanto poder, e se
esvaíra, e agora era como se nunca houvesse existido. Sentia-se
amarrado a uma grande Roda, que num momento o arrastou a um ápice,
no outro momento despencou para esmagá-lo.
Como pudera acontecer?
Eu era um homem, e este homem desapareceu, deixando este outro homem
como um sobrevivente. Aquele homem temido, aquele homem terrível,
constantemente embriagado de uísque, e que vociferava e rosnava,
olhava no olho de um prisioneiro, e via o terror naquele olho... e o
que eu via era a mim, naquele espelho.
Eu então não sabia,
eu trocaria de papel com aquele pobre coitado. Eu já não meteria
medo, eu sentiria medo, muito medo, um medo terrível, um medo
arrastado pelos anos, carregado pra dentro de minha velhice...
Dois homens caminhavam
na direção do ex-coronel. Aquele ódio que ele sentira girando ao
redor nos seus dias de dragão agora se materializava na forma de
dois homens carregando revólveres, avançando para ele. O ex-coronel
esperara por isto, por muito tempo. Ele sacou a sua arma, disparou
duas vezes, mas as suas balas não atingiram o alvo. As balas dos
dois homens sim, atingiram o ex-coronel no peito, rasgaram a sua
carne, perfuraram os seus órgãos.
Choque.
Queda.
O fim.