segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Processo de Joana D´Arc, filme de Robert Bresson




Em entrevista publicada no Globo de 11.09.2011, o cineasta alemão Wim Wenders falou sobre a violência nos filmes do francês Robert Bresson:


“Outro dia assisti a “A Grande Testemunha” (1966), do Robert Bresson. Fiquei bastante surpreendido por ele. Ele era violento de uma maneira da qual nenum dos filmes recentes de violência consegue nem chegar perto. Ele não mostrava violência, mas me fazia experimentá-la. Eu já tinha assistido ao filme há mais de 30 anos e mal podia acreditar no quão contemporâneo e pungente ele é.”


Experimentei a mesma sensação de violência em outro filme de Bresson, “O Processo de Joana

D´Arc” (1962). Na verdade, ao assistir este filme, pensei que era o filme mais violento já feito, deixando pra trás filmes de guerra, gore, filmes de zumbi, O Massacre da Serra Elétrica, Takashi Miike e Oldboy. Deixa pra trás Irreversível, e A Fita Branca. Deixa pra trás até o Saló, de Pasolini.


E isso, sem recorrer aos efeitos especiais nojentos e grotescos, à violência explícita e, até, pornográfica, de besteiradas como Jogos Mortais.


E por que é tão terrível, este filme? Porque ele conta uma história real, do jeito exato que ocorreu, e esta realidade é mais apavorante do que pode conceber a mais delirante imaginação.


Outros filmes, apavorantes, também mostraram casos reais, ou se basearam neles. Psicose, Henry, Retrato de um assassino, Wolf Creek, e O Massacre da Serra Elétrica.


Mas mostravam a exceção, a mente doentia, e podíamos nos confortar pensando que era algo isolado, uma peça defeituosa, mas sem relação com nós mesmos.


Mas O Processo de Joana D´Arc mostra uma instituição, a própria Igreja, com seu processo, com suas normas, com seus ritos, com sua lógica e sua racionalidade, e tudo montado para submeter, torturar e eliminar um ser humano, no caso, uma garota de 19 anos, repleta de dignidade, que condena, ao ser condenada, os seus acusadores.


A figura do bispo que a interroga é a mais pavorosa, porque é a de um assassino perfeitamente consciente, lúcido e frio. Ele tem os seus objetivos, agradar aos ingleses, e arma com denodo e eficácia a estratégia para alcançá-los: a destruição de uma inocente.


Por mais que ele tenha fugido das regras, por mais que houvesse um clima de guerra, a lógica que o bispo utilizou para obter a condenação de Joana era endossada pela Igreja e o pensamento da época (endossada pela Universidade de Paris): destruir a experiência pessoal da fé, destruir a individualidade.


Apegar-se à letra das Escrituras, condenar como herético qualquer desvio da interpretação oficial. Quanta soberba, pecado original, daqueles Santos Homens, julgando-se infalíveis, mandando para a fogueira suas bruxas e hereges!


O tempo todo nota-se o empenho de fazer com que Joana renegue sua crença profunda, o seu modo de sentir e vivenciar sua fé. Ameaças e torturas infligidas em uma criança, um espírito puro e sincero. E para quê? Para que ela se anulasse, renunciasse à sua dignidade, à fidelidade com aquilo que julgava mais importante, à fidelidade com seu modo de entender e amar a Deus.


A morte na fogueira é simbólica deste desejo de aniquilação do ser humano. Suprimi-lo, reduzi-lo a cinzas, até que não reste mais o humano. Apenas o animal conformado, obediente, passivo. Aquele que não questiona toda a corrupção que vem dos Superiores, daqueles que têm o poder.


E esta foi a violência última a que foi submetida uma jovem de 19 anos, repetindo a Paixão de Cristo, e infligida pela própria Igreja guardiã desta memória. Foi tudo documentado nas atas do processo, as perguntas dos inquisidores, as respostas daquela moça, que realmente parecem divinamente inspiradas, tão firmes e admiráveis. O empenho com que o bispo Pierre Cauchon perseguia seus objetivos parece estranhamente se tornar o empenho de um homem que busca a própria destruição. Como Deus endurecendo o coração do Faraó. Sua insistência em buscar um motivo de condenação, mesmo confrontado pela firmeza da Santa, é aterradora.


Talvez mais terrível do que o sofrimento e a morte injusta da jovem de 19 anos seja esta capacidade do homem de agir contra a consciência, contra a misericórdia e o bem. Desobedecer a Deus, que é Amor, Compaixão, e experimentar do fruto da árvore proibida.


No contexto histórico, a Igreja queimou muita gente, submeteu muita gente, vejam os casos de Galileu Galilei e Giordano Bruno. Massacrou hereges, vejam os albigenses, no seu fanatismo torturou e matou, homens e mulheres, velhos e crianças.


Deveria servir de alerta para o quê o ser humano é capaz. Conceber e institucionalizar um mecanismo para dominar de modo absoluto sobre os semelhantes. Sequestrar-lhes as almas. E isto, às vezes, quando dominado pelo fanatismo, com as melhores das intenções, e partindo das idéias mais sublimes!


É esta capacidade para a violência última que o filme de Bresson documenta, com exatidão, atendo-se às atas do processo e às circunstâncias históricas.


Lembrei de outros dois filmes relacionados, “Giordano Bruno” (1973), e “Häxan – A feitiçaria através dos tempos” (1922). Convém não assisti-los em sequência, ou a devastação emocional pode ser muito grande.


Também recomendado é o livro “Joana D´Arc”, de Donald Spoto, para quem quiser se aprofundar nesta fascinante história.


É Fantástico!



Reportagem do Fantástico de 16.10.2011, mostrando funcionários públicos aposentados por invalidez da Assembléia Legislativa de Santa Catarina nos últimos 30 anos, com salários que variam de R$ 2 mil a R$ 24 mil reais, além de outras vantagens, como isenção do imposto de renda.

Questionados, ainda reagem aos repórteres com irritação, com deboche, com hipocrisia, invocam "milagres" e alegam que "não sabiam de nada" (síndrome do mensalão).


E a pergunta importante é: o que fazemos, país, nação, com esses ladrões fraudadores?


Vamos pensar no exemplo do maratonista com cardiopatia grave: ele se aposentou há 29 anos, quando tinha 34 anos. Digamos, por hipótese, que o seu salário fosse o de R$ 24 mil reais. Por ano, com 13 salários, ele embolsaria 312 mil. Por 29 anos, teria embolsado mais de 9 milhões de reais. E isentos de imposto de renda, contribuição previdenciária, dentre outros benefícios.


E não foi o único. A reportagem diz que dos 196 aposentados convocados para revisão médica, 60% não comprovaram a doença que deu origem ao afastamento. Ou seja, 117 suspeitas de fraude, muitas grosseiras, como mostra a reportagem. Doenças raras, graves, mas que não apresentam sintomas? O que é isso? Vamos engolir as histórias de milagres? Invocar o Santo Nome em vão?


Se um bandido for pego furtando, R$ 100, R$ 50, ou R$ 10, ou um xampú, ou um sabonete, sujeita-se a pena de um a quatro anos, e multa (art. 155 do Código Penal). Se o furto é qualificado, por exemplo, mediante fraude, ou mediante o concurso de duas ou mais pessoas, a pena vai de dois a oito anos, e multa.


E se o sujeito embolsa, ao invés de R$ 10, R$ 9 milhões de reais? Não é o batedor de carteira, ou o ladrão de galinha, mas o prejuízo é muito maior. E será que vai dar cadeia, para este aposentado fraudador, e para o médico que atestou falsamente, e para o servidor que deixou passar as fraudes?


Não parece. A reportagem diz que desde a década de 1980 as fraudes foram denunciadas, sendo o caso conhecido, na época, como “o escândalo das muletas”. Passou pelas mãos de dois juízes, mas não foi resolvido por falta de novas perícias. E então ficamos mais vinte anos dando dinheiro a um ladrão fraudador.


E nem parece que mudamos nosso modo de proceder. A reportagem diz que a Assembléia convocou alguns dos aposentados por invalidez que vendem saúde para retornar ao trabalho. Será que interessa à Assembléia o trabalho de um vigarista, de um pilantra, de um safado? De qualquer modo, informa-nos a reportagem, “a maioria dos convocados conseguiu uma liminar da Justiça para suspender o retorno à Assembléia”.


Que tal, ao invés disso, cadeia. E ressarcir os prejuízos causados. Se comprou um apartamento, venda-se o apartamento. Se tem uma casa na praia, venda-se. Um automóvel, dois? Venda-se. Conta bancária, de poupança, ações? Confiscadas.


Se estiver na miséria, depois de sair da prisão, sem condições de trabalhar, vamos lhes dar um benefício assistencial, como prevê a lei. Não precisamos ser bárbaros e desumanos. Mas, se fizermos menos que isso, seremos frouxos e patetas, legando aos nossos filhos um país injusto e cínico.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Este é o inimigo!









Em recente entrevista, nosso presidente do Senado, José Sarney, defendeu ter usado helicóptero da Polícia Militar do Maranhão, Estado governado por sua filha, Roseana Sarney, para viajar até sua ilha particular, ilha de Curupu.


Segundo Sarney, “Quando esses privilégios foram criados, o objetivo era que os deputados fossem livres e seus salários não os fizessem miseráveis, dependentes dos presidentes. Quando a legislação diz que o presidente do Congresso tem direito a transporte de representação, estamos homenageando a democracia, cumprindo a liturgia das instituições”.


O caso dos passeios de helicóptero foi noticiado há cerca de dois meses. Sarney esperou a poeira baixar para sair-se com essa de usufruir de privilégios para homenagear a democracia. Era melhor que permanecesse calado. Uniu à ofensa e à agressão aos cidadãos a insensibilidade e o deboche.


Despudor... cinismo... soberba... despotismo... escárnio...


O que é que explica tais atos, tais palavras, tais conceitos? Como se diz, o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Deforma a alma. Faz da alma um monstro grotesco, retrato de Dorian Gray, separado dos outros homens...



Numa das viagens até sua ilha da fantasia, ilha de Curupu, Sarney deu carona no helicóptero da Polícia a um velho amigo, Henry Duailibe Filho, empresário com contratos milionários no Maranhão. Sempre é bom trocar umas idéias com um velho amigo... quem sabe o que pode sair de bom dessas trocas de idéias?


O helicóptero foi adquirido por R$ 16,5 milhões, no ano passado, e destinava-se a combater o crime e socorrer emergências médicas. Mas lhe foi dada destinação bem mais nobre, de homenagear a democracia, levando Sarney, familiares e amigos para passear na ilha de Curupu.


Leiam mais, e assistam ao vídeo do passeio de helicóptero, neste link:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/963086-sarney-usa-helicoptero-do-maranhao-em-viagem-particular.shtml


No final do passeio, o desembarque das bagagens atrasou o atendimento de um pedreiro de 40 anos, com traumatismo craniano e a clavícula quebrada após sofrer um acidente. Tudo bem, é só uma pessoa comum...


Já o Sarney, como diria nosso ex-presidente Lula, mostrando toda a sua sofisticação, “não é uma pessoa comum”; pessoas incomuns têm prioridade para dar seus passeios, enquanto pessoas comuns demoram para receber socorro médico emergencial. Tá explicado o Brasil, em uma frase.


Foi Lulinha, aliás, o principal responsável pela sobrevida política de Sarney. No sufoco do mensalão, pra salvar a própria pele, assinou com gosto um pacto com as práticas políticas mais retrógradas, porém muito em voga no nosso Brasil profundo.


Sim, nosso patrimonialismo arraigado. Nossos donos do poder têm de ser donos de tudo. Têm de mandar e desmandar, ao seu bel-prazer. Têm de interferir em cada negócio, e fazer exigências pra cada negócio, e morder o seu pedaço de cada negócio, e dar sua permissão pra cada negócio, ou capturar o negócio pra si, caso lhe apareça como muito apetitoso.


Bem que dizem que o socialismo é o neo-patrimonialismo. Nada mais lógico, então, que o nosso presidente socialista tenha unido forças com nosso senador patrimonialista. A crise do mensalão serviu apenas para precipitar a consumação deste caso de amor que estava escrito nas estrelas.


Sarney acalmou Lulinha... sussurrou em seus ouvidos, com voz de sereia, fazendo promessas... claro que Lulinha caiu nos braços de seu Mestre, Mestre dos Magos, seu ídolo, aquele que passou a vida toda no poder, usufruindo sem quaisquer limites o poder... e retribuiu, em cada oportunidade, generosamente, cada chamego e afago recebidos... chegou a fazer um senador do PT revogar o irrevogável, lembram? Aloisio Mercadante, troféu King Kong pelo mico do milênio...


Sarney: esse é o cara do cara






E nossos tontos intelectuais, intelectuais que não lêem nada, não questionam nada, não criticam nada, estão prontos para abraçar o “novo”, “Socialismo Já!”, “Sem medo de ser feliz!”, fechando o círculo, voltando pro ponto de partida.


Mas é tudo tão familiar, tão parecido com aquilo que nossa cultura sempre nos inculcou como certo... nossos intelectuais parecem aqueles meninos rebeldes, que se iludem pensando que são tão diferentes, mas que no final vão seguir os mesmos passos de papai.


Afinal, é bem fácil permanecer no seguro, no conhecido, mesmo que se alterem os discursos, e as superficialidades. É bem fácil ficar no lugar onde se recebem os aplausos e os olhares de admiração e inveja. “É preciso mudar para que tudo permaneça o mesmo”, dizia um personagem do formidável romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa.


Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades...



E no final do Caminho das Ilusões Judas é Jesus, e usufruir de privilégios é homenagear a democracia, e enriquecer grotescamente é servir ao povo, e todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.


E nesse abraço cósmico, do velho com o novo, nessa união de opostos, tão parecidos, tão complementares, ficam de fora chorando aqueles que possuem a lucidez de enxergar por baixo do discurso e da aparência. Estes é que optaram pelo caminho difícil. Porque difícil é romper com o terreno seguro. Difícil é não querer ficar do lado dos vencedores, velhos e novos, rebeldes e conservadores. Difícil é rejeitar o que é familiar, o que parece certo, evidente, indiscutível. Tudo que sei é que nada sei. Que difícil e exigente é assumir uma tal humildade!


Mas quem conheceu os dois caminhos, não opta pelo caminho fácil. Não traz satisfação, não traz liberdade. E a segurança que oferece é tão ilusória!


“Oh! como é miserável o pobre homem que depende do favor dos príncipes! Há entre o sorriso ao qual aspira, o doce olhar dos príncipes e a própria desgraça, mais tormentos e temores do que os causados pela guerra ou aqueles sofridos pelas mulheres. E quando cai, cai como Lúcifer, desesperado para sempre!” - William Shakespeare, Henrique VIII.