
Em entrevista publicada no Globo de 11.09.2011, o cineasta alemão Wim Wenders falou sobre a violência nos filmes do francês Robert Bresson:
“Outro dia assisti a “A Grande Testemunha” (1966), do Robert Bresson. Fiquei bastante surpreendido por ele. Ele era violento de uma maneira da qual nenum dos filmes recentes de violência consegue nem chegar perto. Ele não mostrava violência, mas me fazia experimentá-la. Eu já tinha assistido ao filme há mais de 30 anos e mal podia acreditar no quão contemporâneo e pungente ele é.”
Experimentei a mesma sensação de violência em outro filme de Bresson, “O Processo de Joana
D´Arc” (1962). Na verdade, ao assistir este filme, pensei que era o filme mais violento já feito, deixando pra trás filmes de guerra, gore, filmes de zumbi, O Massacre da Serra Elétrica, Takashi Miike e Oldboy. Deixa pra trás Irreversível, e A Fita Branca. Deixa pra trás até o Saló, de Pasolini.
E isso, sem recorrer aos efeitos especiais nojentos e grotescos, à violência explícita e, até, pornográfica, de besteiradas como Jogos Mortais.
E por que é tão terrível, este filme? Porque ele conta uma história real, do jeito exato que ocorreu, e esta realidade é mais apavorante do que pode conceber a mais delirante imaginação.
Outros filmes, apavorantes, também mostraram casos reais, ou se basearam neles. Psicose, Henry, Retrato de um assassino, Wolf Creek, e O Massacre da Serra Elétrica.
Mas mostravam a exceção, a mente doentia, e podíamos nos confortar pensando que era algo isolado, uma peça defeituosa, mas sem relação com nós mesmos.
Mas O Processo de Joana D´Arc mostra uma instituição, a própria Igreja, com seu processo, com suas normas, com seus ritos, com sua lógica e sua racionalidade, e tudo montado para submeter, torturar e eliminar um ser humano, no caso, uma garota de 19 anos, repleta de dignidade, que condena, ao ser condenada, os seus acusadores.
A figura do bispo que a interroga é a mais pavorosa, porque é a de um assassino perfeitamente consciente, lúcido e frio. Ele tem os seus objetivos, agradar aos ingleses, e arma com denodo e eficácia a estratégia para alcançá-los: a destruição de uma inocente.
Por mais que ele tenha fugido das regras, por mais que houvesse um clima de guerra, a lógica que o bispo utilizou para obter a condenação de Joana era endossada pela Igreja e o pensamento da época (endossada pela Universidade de Paris): destruir a experiência pessoal da fé, destruir a individualidade.
Apegar-se à letra das Escrituras, condenar como herético qualquer desvio da interpretação oficial. Quanta soberba, pecado original, daqueles Santos Homens, julgando-se infalíveis, mandando para a fogueira suas bruxas e hereges!
O tempo todo nota-se o empenho de fazer com que Joana renegue sua crença profunda, o seu modo de sentir e vivenciar sua fé. Ameaças e torturas infligidas em uma criança, um espírito puro e sincero. E para quê? Para que ela se anulasse, renunciasse à sua dignidade, à fidelidade com aquilo que julgava mais importante, à fidelidade com seu modo de entender e amar a Deus.
A morte na fogueira é simbólica deste desejo de aniquilação do ser humano. Suprimi-lo, reduzi-lo a cinzas, até que não reste mais o humano. Apenas o animal conformado, obediente, passivo. Aquele que não questiona toda a corrupção que vem dos Superiores, daqueles que têm o poder.
E esta foi a violência última a que foi submetida uma jovem de 19 anos, repetindo a Paixão de Cristo, e infligida pela própria Igreja guardiã desta memória. Foi tudo documentado nas atas do processo, as perguntas dos inquisidores, as respostas daquela moça, que realmente parecem divinamente inspiradas, tão firmes e admiráveis. O empenho com que o bispo Pierre Cauchon perseguia seus objetivos parece estranhamente se tornar o empenho de um homem que busca a própria destruição. Como Deus endurecendo o coração do Faraó. Sua insistência em buscar um motivo de condenação, mesmo confrontado pela firmeza da Santa, é aterradora.
Talvez mais terrível do que o sofrimento e a morte injusta da jovem de 19 anos seja esta capacidade do homem de agir contra a consciência, contra a misericórdia e o bem. Desobedecer a Deus, que é Amor, Compaixão, e experimentar do fruto da árvore proibida.
No contexto histórico, a Igreja queimou muita gente, submeteu muita gente, vejam os casos de Galileu Galilei e Giordano Bruno. Massacrou hereges, vejam os albigenses, no seu fanatismo torturou e matou, homens e mulheres, velhos e crianças.
Deveria servir de alerta para o quê o ser humano é capaz. Conceber e institucionalizar um mecanismo para dominar de modo absoluto sobre os semelhantes. Sequestrar-lhes as almas. E isto, às vezes, quando dominado pelo fanatismo, com as melhores das intenções, e partindo das idéias mais sublimes!
É esta capacidade para a violência última que o filme de Bresson documenta, com exatidão, atendo-se às atas do processo e às circunstâncias históricas.
Lembrei de outros dois filmes relacionados, “Giordano Bruno” (1973), e “Häxan – A feitiçaria através dos tempos” (1922). Convém não assisti-los em sequência, ou a devastação emocional pode ser muito grande.
Também recomendado é o livro “Joana D´Arc”, de Donald Spoto, para quem quiser se aprofundar nesta fascinante história.