
Num Jornal da Band, de uns meses atrás, assisti a uma notícia que preferia não ter visto: o assassinato de um homem, filmado pelas câmeras.
Aconteceu em um ônibus, um passageiro descontrolado, dando tapas na cara do motorista. Indignado, enlouquecido, agredia o motorista com uma fúria insana. Batia, saía de perto, voltava, batia de novo. Numa dessas, o motorista fecha a porta do ônibus, saca um punhal, golpeia. O outro foge apavorado, o motorista corre para golpear de novo. Tudo nítido diante dos olhos. Ao final, o outro, caído no chão, ergue os braços e faz um protesto, como se reclamasse de algum excesso do motorista. E a voz da bela jornalista nos informa que o homem que recebera as facadas, levado para um hospital, havia morrido.
Morte assim, simples assim, passada no jornal antes das 20 horas, antes do jantar em família. O horror tão banal. Fúria nas ruas, notícia de jornal, e agora temos a overdose de imagens, com as câmeras onipresentes.
E eu me senti mal por ter visto aquilo, o crime real, o absurdo da violência sem sentido, sofrido por este povo, como uma praga e uma epidemia, e, pior, como coisas da vida.
Quanto de insanidade, quanto de violência, de impunidade, de frustração se acumulou, para que um se volte contra o outro, seu vizinho?
Perpetuamente explorado, vendo os espertalhões se dando tão bem, vendo gente honesta passando necessidade, o brasileiro se enche de razão, se enche de indignação, e vai procurar alguma nova vítima para descontar sua frustração, para se sentir um pouco “por cima”, para dar vazão à sua raiva.
Não sei o que o homem que foi morto sentiu, para agredir de forma tão brutal o motorista. Havia um seu parente paralítico, parece, que teria sido desrespeitado.
Mas por mais razões que tivesse, seria o caso de levar o caso à Justiça, e, se o motorista tivesse descumprido algum dever de respeito, ser punido de forma adequada.
Mas para se chegar a recorrer à Polícia, à Justiça, e se chegar a confiar nestas instituições, é necessário tê-las bem organizadas na sociedade, respeitadas, cumprindo com seu papel, bem funcionando. E é preciso ter uma sociedade que exija e que cobre, que se cumpra o seu papel.
“Senhor delegado? Quero denunciar uma agressão. Fulano de tal, no ônibus tal, da linha tal, me agrediu verbalmente, agiu assim, assim...” E o delegado instaurasse o processo, e o Judiciário decidisse, num prazo curto, a pena da lei.
Não estou defendendo, tampouco, a reação do motorista agredido. Também ele deveria, diante da agressão sofrida, levado o caso à Justiça. E a instituição aplicaria a pena ao agressor, certa e segura, quaisquer que tenham sido suas razões. Ele não poderia tomar a Justiça nas próprias mãos, da mesma forma que o motorista, desencadeando a espiral de agressão que termina na morte de um homem.
Mas aqui, com as nossas leis, tudo fica difícil. Vai falar com o delegado? Teme-se perder tempo. Teme-se sofrer um deboche. Se for uma comunidade pobre, teme-se sofrer uma ameaça. Vai levar o caso à Justiça? Teme-se levar 20 anos para se decidir. Teme-se uma decisão absurda, incompreensível, à margem da lei.
Policiais, e Ministérios Públicos, e Juízes, às vezes parecem mais interessados com os próprios umbigos, e com questões de salário e privilégios, enxergando o trabalho que lhes chega como aborrecimentos indevidos à sua nobreza de espírito.
Do outro lado da cerca, fica o povo se digladiando, matando e morrendo numa revolta sem foco, inútil.
Não estou pregando a famosa luta de classes, outra forma da mesma fantasia perigosa e inútil. Estou falando de sociedade bem organizada, com um delegado bem conhecido da comunidade, idem juiz, idem Ministério Público. E umas leis bem claras pautando a atuação dos órgãos públicos. Por exemplo, não instruiu minha queixa? Mas é meu direito, é seu dever, e se descumpre o seu dever, seja punido por isso.
Outro exemplo: passou seis meses, passou 1 ano, sem uma decisão? Não se pode aceitar isso, qual é a justificativa? Chame-se o réu, faça-se uma audiência, ouçam-se as testemunhas, decida-se.
Ora, existem muitos processos? Pois é uma questão de organização (falta de). O juiz deve ter um número certo de jurisdicionados para atender, estabelecido com critério, e semelhante ao da comarca X, e da comarca Y, e da comarca Z. E um tempo médio, estabelecido em lei, razoável, para que cumpra sua função.
Mas estou indo longe demais, bem sei, na nossa realidade de se pensar o Estado como arbitrário distribuidor de “favores” e ameaças. Quando a nossa Polícia é temida como capaz de abrigar matadores, o buraco é muito mais embaixo.
Não se muda tão fácil assim a cultura que forma o patrimonialismo, nem se supre da noite para o dia nossa falta de prática de nos sentirmos sujeitos de direitos.
Aqui, mesmo auto-proclamados “defensores da ordem” justificam torturas e assassinatos de capitães Nascimentos. Imagine-se, então, “defensores da desordem”, que também abundam entre nós... espelhos que se refletem ao infinito, faces da mesma moeda. Cumprir a lei, que é bom, nada. Sempre são 1.002 justificativas para não fazê-lo.
E daí que perpetuamos nossos desrespeitos e agressões, indignados contra a impunidade, mas contando com a impunidade para nós mesmos. Pois se todo mundo faz, e se todo mundo “se dá bem”, eu quero fazer também...
Nossa prisão, nosso círculo.

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