sábado, 12 de maio de 2012

Sólon e Creso

 
 
Heródoto, séc. V a.C.


Creso mostrando seus tesouros a Sólon - Frans Francken o Jovem
© Archivo Iconografico, S.A./CORBIS
Image from Corbis
Histórias
  Creso e Sólon: I.XXIX-XXXIV
Tradução de Mário da Gama Kury*
Sárdis estava no auge de sua prosperidade, e todos os sábios da Hélade vivos naquela época foram sucessivamente até lá. Entre eles estava Sólon, o ateniense; este, após dar leis aos atenienses a pedido deles mesmos, deixou sua terra natal, de onde estaria ausente durante dez anos, e empreendeu uma viagem para ver o mundo, segundo suas próprias palavras. Sólon agiu assim com receio de ser compelido a repudiar qualquer de suas leis, pois os atenienses se haviam comprometido sob juramentos solenes a obedecer durante dez anos às leis que Sólon fizesse.
Por essas razões, e para ver o mundo, Sólon deixou a sua terra e foi para o Egito ao encontro Amasis e para Sárdis ao encontro de Creso; à sua chegada, Creso o recebeu em seu palácio. No terceiro ou quarto dia depois da chegada Creso mandou seus serviçais levarem Sólon para circular entre seus tesouros, e eles lhe mostraram tudo que havia lá, aquela grandeza e prosperidade; tendo ele visto e examinado tudo, Creso, quando se lhe ofereceu uma oportunidade, fez-lhe a seguinte pergunta: 'Ouvimos muitas coisas a teu respeito, hóspede ateniense, em relação à tua sapiência e às tuas perambulações, e a quantas terras fostes em busca de conhecimentos e para ver o mundo; agora, portanto, veio-me o desejo de perguntar-te se jamais viste alguém mais feliz que todos os seus semelhantes'.
Foi esta a pergunta de Creso, que se julgava o mais feliz dos homens. Sólon, todavia, não quis adulá-lo de modo algum, e lhe respondeu sinceramente: 'É o ateniense Telos, rei'. Creso se surpreendeu com essa resposta e perguntou incisivamente a Sólon: 'Por que julgas que Telos é mais feliz?' Sólon replicou: 'A cidade de Telos prosperava, e ele era pai de filhos belos e excelentes, viu crianças nascidas de todos eles e sua riqueza era sólida; além disso, tendo tanta riqueza quanto um homem pode ter entre nós, ele terminou sua vida da maneira mais gloriosa: numa batalha entre os atenienses e seus vizinhos em Elêusis ele atacou e derrotou o inimigo e teve ali a mais bela das mortes; os atenienses proporcionaram um funeral às expensas da cidade no local de sua morte e o distinguiram grandemente'.
Depois de Sólon haver despertado a curiosidade de Creso com sua menção às muitas facetas da felicidade de Telos, o rei perguntou-lhe ainda quem ele punha em segundo lugar depois de Telos, pensando que certamente obteria ao menos o segundo lugar. Sólon respondeu: 'Clêobis e Bíton.

Eles eram argivos, e além de riqueza suficiente eles tinham a força física que descreverei a seguir. Ambos foram igualmente vencedores de competições atléticas, e também se conta a seu respeito a seguinte história: havia uma festa de Hera entre os argivos, e era imprescindível que sua mãe fosse levada ao templo por uma parelha de bois; mas os bois não chegaram a tempo do campo e os jovens, premidos pela escassez do tempo, atrelaram-se ao jugo e puxaram o carro em que sua mãe estava sentada; eles o puxaram ao longo de quarenta e cinco estádios até chegarem ao templo. Isto feito, e sob as vistas da multidão presente, eles tiveram o mais belo dos fins, e o deus mostrou através deles até que ponto a morte pode ser melhor do que a vida para o homem: os argivos os cercaram, felicitando-os por seu vigor, e as argivas fizeram o mesmo em relação à mãe deles por haver tido tais filhos. Ela, então, em sua alegria diante do que havia sido feito e dito, pôs-se de pé defronte da estátua da deusa e fez uma prece para que seus filhos Clêobis e Bíton, que lhe haviam proporcionado aquela grande honra, tivessem a maior ventura possível para os homens. Após a prece os jovens ofereceram sacrifícios e participaram do banquete; em seguida, foram dormir no próprio templo, e nunca mais se levantaram; lá mesmo chegaram ao fim de suas vidas. Então os argivos fizeram e consagraram dem Delfos estátuas dos dois, por haverem demonstrado a sua excelência'.
Sólon lhes deu assim o segundo lugar em felicidade; mas Creso, irritado, disse: 'Hóspede ateniense! Desprezas de tal maneira a nossa felicidade que nos comparas com homens comuns?' Sólon respondeu o seguinte: 'Conheço todo o poder dos deuses, Creso, e seu ânimo vingativo, e o quanto eles gostam de desconcertar-nos. E me interrogas sobre a sorte dos homens! No curso de uma longa vida podemos ver muitas coisas de que não gostamos, e também podemos sofrer muito. Calculo em setenta anos a duração máxima da vida humana; esses setenta anos correspondem a vinte e cinco mil e duzentos dias, sem contarmos os meses intercalares. Se a cada dois anos for acrescentado mais um mês ao ano, de tal forma que as estações e o calendário possam sincronizar-se, então os meses intercalares serão trinta e cinco além dos setenta anos e os dias desses meses serão mil e cinqüenta; logo, todos os dias dos setenta anos parecem ser vinte e seis mil e duzentos e cinqüenta, e podemos dizer perfeitamente que nenhum desses dias é igual ao outro naquilo que nos traz. Então, Creso, o homem é apenas incerteza. Pareces-me muito rico e rei de muitos homens, mas não poderei responder à tua pergunta antes de ouvir dizer que findaste bem a tua vida. Em verdade, o homem muito rico não é mais feliz do que aquele que tem apenas o suficiente para o dia de hoje, a não ser que a boa sorte lhe continue fiel até o fim da sua vida, proporcionando-lhe todas as boas coisas. Muitos homens com grandes riquezas são desventurados, e muitos que têm recursos moderados são venrutosos. De fato, o homem muito rico mas apesar disso desventurado tem apenas duas vantagens sobre o venturoso com recursos moderados, mas este tem muitas vantagens sobre o rico desventurado: o último dispõe de mais meios para realizar seus desejos e para enfrentar o golpe de uma grande calamidade, mas as vantagens do primeiro são que, embora ele não tenha tantos meios quanto o outro para enfrentar a calamidade e satisfazer os desejos, a calamidade e os desejos são mantidos longe dele por sua boa sorte, e ele está livre de deformidades, doenças e todos os males, tem filhos belos e ele mesmo é belo. Ora: se esse homem, além de tudo isso, ainda termina bem a sua vida, então ele é o homem que procuras, e é digno de ser chamado venturoso; mas devemos esperar até que ele esteja morto, e ainda não o chamaremos de venturoso, mas apenas de homem de sorte. Ninguém que seja apenas homem pode ter todas essas coisas juntas, da mesma forma que terra nenhuma é totalmente auto-suficiente quanto aos seus produtos; algumas dão uma coisa, mas carecem de outra, e a melhor terra é a que produz muitas coisas; de maneira idêntica, pessoa alguma é auto-suficiente; algumas têm uma coisa, mas carecem de outra, mas o homem que se mantém na posse de mais coisas e afinal chega suavemente ao termo de sua vida, tal homem, rei, eu julgo digno desse título. Devemos olhar para o termo de cada coisa, e ver como ela findará, pois a muitas pessoas a divindade dá um lampejo de ventura para depois aniquilá-las totalmente'.
Falando assim, Sólon não foi agradável a Creso, que por isso não lhe demonstrou estima alguma e o mandou embora, pois pensou que é uma tolice desprezar a prosperidade e querer que se olhe para o termo de todas as coisas.
Mas depois da partida de Sólon a vingança divina caiu pesadamente sobre Creso, em minha opinião porque ele se julgava o mais venturoso de todos os homens.
Heródoto, Histórias, Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1985, p. 26-29.

Nenhum comentário: