- Finalmente, sr. K. Colocamos-te as mãos. Seu corpo nu, maltratado, doente, torturado, disforme, à beira da morte, reduzido à mais abjeta submissão...
- Estamos todos à beira da morte.
O homem de terno, em
pé, prestou atenção ao homem nu, amarrado a uma cadeira, e que
parecia estar desacordado.
- Muito bom, sr. K... ainda pode sofrer interrogatório?Você bem sabe quem o trouxe até esta prisão, não sabe? Você mesmo, é a pessoa a quem se culpar. Você mesmo trouxe este peso sobre os seus ombros. Você tinha ideias muito perigosas para este tempo, para este regime, para o atual equilíbrio de poder. Você não percebeu como era perigoso, pensar e agir diferente? Não podia guardar suas ideias pra você mesmo, fazer seu trabalho, preocupar-se com a família, ocupar o seu lugar, destinado na ordem das coisas, sem pretensões impossíveis, sem pretender que fosse tão especial, na economia do universo?
- Estamos ambos presos num mesmo pesadelo.
- Você ainda zomba de mim? Eu o reduzi, entendeu bem? Aonde você pensa que pode esconder a esperança?
- Eu posso.
Olhe pra mim: eu sou o
chefe desta Seção. Eu vou sair daqui para um bom banho quente,
enquanto que o seu corpo está destinado a uma vala comum.
O homem de terno mostra
uma expressão de raiva. Ele torna a falar devagar, com um tremor na
voz.
- Você sabe quem te denunciou? Quem te traiu? Foi sua bela namorada, seu lindo amor. Achou que poderia entreter romances, como nos velhos tempos? Não percebeu que os tempos haviam mudado, que seria muito suspeito entreter-se com ternos sentimentos? Você trouxe a destruição sobre si mesmo.
- Eu não posso entender o que me falas.
Os dois homens
permanecem em silêncio por algum tempo. O homem de terno mantém o
olhar fixo no prisioneiro. Começa de novo, falando devagar:
- Onde é que você esconde esta vã esperança, seu naco de carne? Qual sentido você pretende dar a este imenso sofrimento que lhe impingimos, apenas porque você nos caiu nas mãos?Você confia em Deus, K.?
- Talvez tenhamos todos de expiar algum crime, anterior ao nosso nascimento, além de toda compreensão. Eu não sei como, ou porquê. Eu posso.
(Close no rosto
enfurecido do homem de terno, fechando no seu olho, cuja imagem se
funde por um segundo com a de um olho de cobra.)
O homem de terno avança
sobre a mesa dos instrumentos de tortura, apanha um bisturi e o enfia
no pescoço do prisioneiro, que ainda consegue falar:
- Pobres símbolos, num quarto de espelhos...
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