segunda-feira, 6 de julho de 2009

Elites

O Brasil parece sofrer de uma triste falta de elites, “elites”, no melhor sentido da palavra. Falta de uma elite de valor, com um compromisso bem claro na cabeça: fazer com que o país melhore, fazer o bem aos seus semelhantes. Um compromisso ético: não praticar o mal, não permitir que outros o pratiquem. Uma elite com o compromisso com o trabalho, com compromisso com a honestidade, com o compromisso do estudo. Com o compromisso de cobrar como direito, não seu, mas DE TODOS, que os governantes se pautem com correção, com decência, e também o amigo, e o vizinho, e o próprio filho.Esta ausência de elites se explica de muitas formas: uma falta de nível educacional geral, as poucas elites de aprendizagem que se formam ficam isoladas na massa geral, não têm contato, não se mobilizam; uma certa falta de definição de valores clara, uma certa permissividade diluída no ar, uma certa confusão entre o que é autoridade e o que é autoritarismo, uma certa melancolia e desesperança “com tudo isto que está aí”.Pode ser também a cultura que se formou sob o signo da escravidão, por muitos anos em nossa curta e acidentada História ela esteve instalada, horrível chaga; e isto fez gerar uma sociedade dividida e desigual, nós somos “nós” e “eles”; casa grande e senzala. E mais um estatismo ibérico, mais uma colonização para explorar renda, quanto mais rápido e mais fácil, melhor; corrupção e exploração, são só outros meios de se conseguir o que se busca.Então, temos tantas “elites”, que não escrevem, não lêem, não sabem fazer contas, e não pensam; temos tantas "elites" que não se levantam pelo direito, não se indignam, não lutam; temos tantas “elites” que se corrompem, que aceitam “presentes”, que aceitam “jogadas”, que têm o rabo preso, que não explicam origem de dinheiro; temos tantas “elites” que discutem sexo dos anjos em universidades, que aceitam qualquer tipo de ditadura suja e explicação simplista, fórmulas mágicas que “explicam e resolvem” toda a realidade, e renunciam ao próprio pensamento crítico e livre, e não fazem NADA DE CONSEQUENTE E CONCRETO, para tornar mais justas as leis e as práticas da sociedade onde vivem.Isto tudo vai ter de mudar aos poucos, e não adianta, e nem é justo, entregar-se ao desespero. As verdadeiras elites não se entregam: fazem o bem que podem para a sua comunidade, organizam um hospital, organizam uma escola. Distribuem uma roupa, um alimento, ou um livro, criam um site para divulgar e investigar prestações de contas públicas. A verdadeira elite é composta de pobres, remediados e ricos. Estudados ou ignorantes: eles praticam o exemplo de amor ao bem e à Justiça, de admiração e respeito pelo sabedoria e pela honestidade; são generosos e gentis. Não estão com a cabeça em odiar, culpar ou perseguir alguém, mas muito satisfeitos e felizes preocupam-se em ajudar, com o tanto que sua força permite, a quem esteja próximo. E esta força permite tanto, esta força permite tudo.Embora não se possa esquecer nunca que o combate é de todo o dia. Não se pode perder nunca de vista a necessidade da indignação, e da reação, civilizada e consequente. Para os que chegam a praticar tudo isto, a colheita não se faz esperar; os frutos são colhidos a cada dia, e não faltam nunca. Cada pessoa que se atinja, se interessando por um livro, matando a fome, se livrando de uma doença, já é o próprio bem se espalhando em círculos. Muito embora a alma reconheça e sofra as limitações das contingências materiais, históricas. Uma vida humana passa rápido, e as mudanças necessárias, para serem sentidas numa grande escala, ultrapassam por vezes nossas vidas. E sempre experimentamos resistência, e sempre é possível o retrocesso. Conhecemos a História, e os horrores de guerras gálicas, e os horrores de Holocausto. Ou abrimos o jornal, e lemos barbaridades. Não importa, porque a esperança permanece tão pertinaz quanto a vida. Sócrates já experimentava tempos difíceis em seu tempo, mas deu-nos a grande lição que não envelhece: a coragem de aferrar-se ao bem traz a liberdade e a esperança. O que faz lembrar aquela frase enigmática: quem quiser salvar sua vida a perderá.Mas estou falando de elites, e de Brasil; e tento destacar que é imprescindível a qualquer país que se queira livre possuir uma elite de estudo, e de trabalho, e de moral, e que esta elite consiga atuar sobre leis e instituições deste país, para que se tenha uma sociedade justa.Não é um trabalho que cabe apenas a esta elite de doutos. A sociedade toda precisa encontrar o seu orgulho, conhecer o seu direito, e cobrar com justiça o que é justo. Mas caberá a esta elite, aos que se destacam, em cada área de trabalho, aos que se adiantam em estudo e conhecimento, refletir e viabilizar as soluções para a sociedade.Tomemos por exemplo os médicos, e o serviço público de saúde. É justo a sociedade pretender que haja, pelo menos (é uma questão de prioridades), um exame periódico, de acordo com a faixa etária, que alcance toda a população, e um atendimento rápido, nas emergências. E isto de qualidade, naturalmente, sendo os profissionais treinados para identificar, e combater, ou encaminhar, os problemas de saúde que os pacientes enfrentam, e que seja avaliado, objetivamente, o trabalho destes profissionais, e que utilizem métodos e exames pouco onerosos, QUE POSSAM SER ESTENDIDOS A TODOS, O MAIS IGUALITARIAMENTE POSSÍVEL.Se a sociedade quer firmemente isto, cabe a seus médicos, seus profissionais da área de saúde, chamar para si a responsabilidade, reunir-se, discutir, estudar, com a ajuda de estatísticas, de matemáticos, de administradores, para apresentar um plano de saúde pública que atenda estes ideais. ELES são os profissionais, ELES precisam ter o orgulho de exercer dignamente sua profissão, e de que maneira vão exercê-la dignamente, com orgulho, se a doença, a falta de cuidados, grassa pelo país? ELES têm de guiar, a sociedade toda tem de exigir, dos seus governantes, dos seus administradores, que sigam um plano traçado, que estenda o acesso à saúde igualitariamente, que não deixe nenhuma região, nenhuma população, desatendida, ou com médicos de menos, para os exames e procedimentos mais básicos.Claro que uma vez traçado o plano de atendimento à saúde, com base em pesquisa, com base em estudo, estatística, com base em treinamento, capacitação, orçamento, tudo isto terá de ser levado para votação de um Congresso que, presume-se, debateria cada aspecto do plano, perguntaria, trataria de evitar falhas, desperdícios, proporia, adaptaria, refletiria, e votaria, de acordo com sua consciência e convicção (ai-ai, e isto que era para ser tão natural e básico soa tão utópico).E os representantes do povo, em cada Estado, em cada Município, se informariam dos direitos à saúde de sua população, e exerceriam o importante papel de fiscalizar, cobrar, exigir, propor adaptações e mudanças, em nome de seus representados, sobre este plano nacional de atendimento à saúde, conforme a lei, e adequado às necessidades específicas de cada região. E cada cidadão cobraria também de seus representantes, e seria também informado de seus direitos, de forma simples e rápida, e inclusive dos procedimentos que poderia adotar para fazer uma reclamação, ou pedir um esclarecimento, ou cobrar, ou sugerir... tudo isto com a orientação e o apoio de seus representantes, e das estruturas do Estado, que reconheceriam nele um cidadão, detentor de direitos, e não um súdito, cujo “direito” é ser tosquiado e calar a boca. E deveriam ser previstos também os “testes de realidade”, das leis e sistemas. Com base em pesquisas, com base em metas, e estatísticas. Com base em um pensamento racional e pragmático. Humilde diante dos fatos. Para mudar o que não funciona, repetir e aprofundar o que dá certo, aprimorar, manter, cobrar, premiar...Neste quadro, eu destaco o papel dos médicos, dos profissionais dentro deste sistema, pois eles é que estão “por dentro” do sistema de saúde que ora comento, conhecem diretamente suas características. É de se reconhecer e valorizar o papel desta elite na solução do problema que a ela compete mais diretamente: prestar um bom serviço de saúde, cumprir bem o seu papel, como profissional da área, servir bem ao seu país, ao seu povo, ao seu semelhante, realizando aquela função de sua escolha, e, claro, ser valorizado por isso, ter uma boa condição de trabalho, ter os instrumentos, ter reconhecimento, estímulo...Mas parecemos bem longe disso, infelizmente. Parecemos não saber como cobrar, como fazer, salvo exceções, parecemos bem conformados com o absurdo e a loucura. Cada um garantindo “o seu”, como dá, briga de foice, desesperança, cinismo. Gente que finge que trabalha, gente com privilégios, outros se esforçando muito, mas sem estímulo, sem reconhecimento, sem perspectiva de melhora. É isto que eu digo que faltam elites, massa crítica para fazer a mudança, que atinja um nível nacional, que permaneça.Vou dar um outro exemplo, com advogados e juízes. Profissionais do direito. É justo, é direito, que a sociedade queira uma Justiça rápida, eficaz, previsível. Que os maiores crimes, que os maiores roubos, que os maiores desvios, recebam as maiores prioridades, que os conflitos sejam desestimulados, pela punição rápida, eficaz, previsível, dos maus pagadores, dos litigantes de má fé, dos chicaneiros.De novo, a elite que milita na área é que tem o papel fundamental de refletir e propor soluções que atendam esta demanda legítima da sociedade. Um plano que preveja prazos, e melhor divisão do trabalho, que evite ociosidade de um lado, e acúmulo de serviço do outro, que acabe com privilégios, e concentre os recursos onde são mais necessários.E de novo, sente-se a falta desta clareza de propósito, desta linha de ação, desta consciência, deste compromisso. Sente-se a falta desta elite que não compactue com seus próprios pares, se estes se mostrarem incompetentes ou indignos; que recusem privilégios e subornos; que demonstrem sobriedade, compromisso com o trabalho que escolheram, visão crítica e independente para enxergar-lhe as falhas, imaginação viva e coragem para realizar mudanças.
Não é tarefa fácil. Lembro de um dado que me impressionou no livro “Uma História do Brasil”, de Thomas E. Skidmore: “(...) Já em 1818, por exemplo, apenas 2,5% da população masculina livre em idade escolar era educada em São Paulo. Mesmo a elite não tinha oportunidades educacionais no Brasil além de uma abordagem altamente retórica do aprendizado que terminava na escola secundária (...)”. Mas, como dizia Cazuza, “o tempo não pára”. Sigamos junto com ele, tomemos as rédeas de nosso destino. E comprovemos aquela idéia, título de um livro de Marshall Berman, que nem conheço, mas eu gosto do título: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
O tempo não pára, Cazuza http://www.youtube.com/watch?v=7AkEQM9AdEY

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