terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Alcides e Arruda na Terra do Sol

O caso Arruda, se arrastando a semanas... o que nos mostra o caso Arruda? Com toda a simplicidade, com toda a honestidade, o caso Arruda nos mostra que não funcionamos como sociedade. Que não somos um país digno.

É cristalino, isto, é exato. Tem toda a força da imagem, da realidade, por mais que uns e outros iludidos por doces miragens de palácios, de privilégios, de aclamações internacionais, de bajuladores, enxerguem um país lindo, e culpem a imprensa por não espelhar esta fantasia de suas mentes.

No país lindo, de 80% de popularidade, não existe essa coisa feia chamada corrupção. Também não existem essas outras coisas feias, jovens morrendo assassinados em números alarmantes; isto se passa naquele outro país, das periferias, onde não temos os muitos homens armados para nos fazer a segurança, a nossa e a dos nossos filhos. Carros blindados, helicópteros, vizinhanças ilustres... o que os olhos não vêem, o coração não sente.

No outro país, aquele das periferias, um jovem no Recife foi assassinado com dois tiros na cabeça. Alcides do Nascimento, 22 anos. Um fato tão corriqueiro, que nem ia dar manchete no jornal. E os bandidos que deram cabo do jovem agiam ao dispor de uma vida como quem confia absolutamente na impunidade que grassa no país. Deram azar porque o caso chegou aos jornais, como mais um símbolo de um país celerado, que vitima seus melhores valores. O rapaz assassinado superava todas as dificuldades de sua origem pobre, filho de uma catadora de papel, e prestava o último ano para se formar na faculdade de biomedicina.

E ele é mais um entre milhares, entre jovens e velhos, mulheres e crianças, vitimados nas nossas violentas periferias/estradas/subúrbios/favelas, vitimados pela nossa desorganização, pela nossa cultura de impunidade, pela nossa sociedade corrupta, pela nossa polícia que não investiga, pelo nosso Judiciário que não pune.

Não poderemos jamais quebrar esta velha maldição que nos consome, enquanto aceitarmos “pragmaticamente” estas realidades, ou enquanto fantasiarmos que elas não existem. Se a realidade é a de um sujeito manejando um grande escândalo de corrupção, enfiando milhões de dinheiros nos bolsos, nas pastas, nas meias e cuecas, cheio de cúmplices e cupinchas, e se esta realidade está gravada, documentada, escancarada para toda a nação, o que é que justifica que esta pessoa continue no comando, continue nos ilustres cargos de deputados, governadores, chefes de gabinete, continue a comandar a polícia que reprime as manifestações, continue a contar piadas e a fazer deboches?

Sim, precisa haver o processo. Mas como é que os nossos processos não se concluem, semanas após semanas, com todas as evidências de vídeos, de escutas, de investigações? Como é que os processos se arrastam, sem que haja uma decisão, uma voz de comando, para afastar da dignidade de cargos públicos pessoas que cometem gravíssimos crimes? Para que estas pessoas encontrem punição para os crimes gravíssimos que praticaram?

Por que é que os nossos processos ganham decisões que não espelham a realidade? Por que é que os nossos processos concluem que não houve corrupção, não houve crime, não é cabida a prisão, quando tantos e tantos destes acusados não explicam absolutamente o modo como amealharam fortunas? QUANDO EXISTEM IMAGENS, QUANDO EXISTEM ÁUDIOS, QUANDO EXISTEM PILHAS DE DINHEIRO EM CIMA DE MESAS SEM QUE SE EXPLIQUE A ORIGEM?

Enquanto os milhões são negociados e rateados nos muitos esquemas, nas periferias falta tudo, e sobra violência. E os homens que deviam estar empregando seus talentos e esforços para dar fim a estas tantas mazelas que afligem tantos da nossa população, os homens que estão nestes cargos de poder e responsabilidade, estão usando suas posições e seu engenho para organizar mais um golpe, e enfiar mais um maço de dinheiro no rabo.

Mas felizmente nada disso acontece no nosso lindo país. O Alcides do Nascimento não morreu assassinado, e só os jovens que já eram “coisas ruins” mesmo, envolvidos com droga, é que são assassinados nas periferias, e eles mereciam, é bom que seja assim.

E se as nossas prisões quase não vêem um desses corruptos de milhões, um desses gente-fina, poderosos, “da alta”, isto acontece porque vivemos num país em que quase não acontecem estes grandes desvios de dinheiro público. Um país onde as pessoas ganham pelo trabalho feito, e em que podem justificar com a fronte erguida a origem de cada ganho.

A imagem do sujeito enfiando o dinheiro na cueca? Isso não diz nada. Temos de esperar a conclusão do processo, com a decisão condenatória decisiva. Se esta decisão não vier nunca, ou vier daqui a 30 anos, e anunciar que ocorreu a prescrição, ou que não foi seguida alguma formalidade do processo, seguiremos na lógica do lunático, aferrados à fantasia: “Foi só caixa-dois”; “todo mundo faz”; “foi coisa de uns aloprados”; “não podemos prejulgar”. E a realidade vai seguindo cor-de-rosa para esses, os amigos não estão na prisão, eles próprios não estão na prisão, todos continuam com seus rendimentos fluindo, viajando para suas palestras em congressos de amigos, intermediando negócios com suas influências, com seus altos cargos, com suas mansões e castelos, com seus seguranças e seus muitos direitos adquiridos, votados em causa própria.

O problema é: se a realidade é enxergada em cor-de-rosa, por que é que se lutar pra mudá-la? Pra ela ficar mais cinza? Ora, se a realidade é cor-de-rosa, mantenha-se assim. E os milhões que têm a realidade muito mais cinza, e até negra? Estes não têm de fato o poder, apenas formalmente.

Realmente, a lei diz que o poder emana do povo. Mas a nossa prática impõe uma nítida distinção entre os governantes e os governados. A nossa prática é a dos políticos que se perpetuam no poder, é a das nossas distintas dinastias que DOMINAM nos seus feudos, sempre os mesmos, um jogo de cartas marcadas.

E os novos talentos que surgem são facilmente cooptados. É só dançar conforme a música, tem muito lombo de trouxa pra fazer a festa. Tem muita pele pra ser esfolada. E o Grande Esquema não precisa mudar e não muda.

Mudará. Em alguma geração mudará. Para isso precisaremos de uma massa crítica de pessoas esclarecidas, com valores dignos e honestos. Por aí se vê o valor prioritário, fundamental, de uma boa educação, no sentido amplo da palavra.

Sinto dizer que esta mudança para um país digno não está no horizonte ainda da nossa próxima geração. É triste dizê-lo, mas eu não poderia compactuar com a mentira e a empulhação. Esta nossa jovem geração amarga os últimos lugares nos exames internacionais de matemática, de ciências, de compreensão de textos. Nossa escola sofre de imensas mazelas, pra não falar da desestrutura em que vivem tantas das nossas famílias.

Mas tudo isto mudará. Vemos o exemplo de escolas que conseguiram superar suas dificuldades e oferecem um bom ensino. Vemos o exemplo de profissionais dedicados, construindo suas ilhas de excelência. São ilhas, por enquanto, mas o bom exemplo irá se multiplicar, se propagar, progredir. Um novo sistema, superior, vai superar o antigo. A boa notícia é que, a contar do momento em que construirmos este sistema de educação, não digo ótimo, apenas razoável, para um suficiente número de escolas, bastará a esta geração crescer, para que os resultados se façam sentir.

Em dez ou quinze anos, a contar do momento em que um ensino de melhor qualidade tiver sido instituído mais igualitariamente pelo país, nos seus rincões, subúrbios, periferias e favelas... O tempo para que um número suficiente, a tal massa crítica, de crianças destes lugares mais desfavorecidos, levar para crescer, depois de ter recebido um ensino apenas minimamente adequado...

Uma seguinte geração já iria aprimorá-lo em mais alguns graus, e estender o seu alcance para uma percentual ainda maior de jovens... e um círculo virtuoso, progressivo, se instalaria.

Mas o ponto de virada, o divisor de águas, seria este primeiro momento em que se atingisse este limite mínimo de qualidade e difusão do ensino. Em que se conseguisse simplesmente alfabetizar bem, e difundir o prazer da leitura. Para este mínimo necessário percentual de alunos, que constituiria a futura elite à frente do país.

Uma futura elite que não terá aquela visão e aquele compromisso com a “realidade cor-de-rosa”, falsa, dos eternos privilegiados do nosso país injusto. Quando se alcançar esta massa crítica de uma elite de pessoas com o discernimento que só uma educação de qualidade produz, e esta elite ocupar os cargos e os postos de comando, então as realidades negras e cinzas do país serão enfrentadas, e poderão ser mudadas. Quando as crianças da periferia, que viveram a realidade da periferia, a violência e a injustiça, alcançarem um nível de pensamento que lhes permita conceber as soluções para os seus problemas, e a maneira de ver estas soluções adotadas pelo poder público. Será a grande hora para os Alcides do Nascimento, quando ao invés de serem assassinados e desperdiçados, viverão como homens dignos e felizes, construtores de uma realidade melhor para todos nós.

Segue o link com a reportagem no Jornal Nacional sobre o assassinato de Alcides do Nascimento
http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL1482264-10406,00-PE+ASSASSINATO+DE+UNIVERSITARIO+CAUSA+INDIGNACAO.html

Música tema: Bob Dylan, The times they are a´changin
http://sinatti.blogspot.com/search?q=times

Nenhum comentário: