“Eu ainda estava
sentado quando novo clamor me fez estremecer. Agora o som vinha do
pátio, lá embaixo, e era um grito de agonia de mulher. Corri para
junto da janela e, abrindo-a, espreitei através das barras. E, de
fato, vi uma mulher de cabelos desgrenhados, com ambas as mãos
cerradas e apertadas contra o coração, como alguém esgotado depois
de uma corrida desesperada. Ela se apoiava de encontro a um dos
ângulos da galeria do pátio. Quando avistou meu rosto na janela,
arremessou-se para a frente, com um gemido, e gritou com voz
estridente e ameaçadora.
A seguir ela caiu de
joelhos e, erguendo ambas as mãos, voltou a gritar as mesmas
palavras, em um tom que dilacerava meu coração. E sem conter seu
grande desespero, ela arrancava os próprios cabelos, golpeava o
peito, abandonando-se a todas as violências típicas de uma emoção
descontrolada. Por fim atirou-se ao chão. E embora não mais pudesse
vê-la, continuei ouvindo os infindáveis golpes que suas mãos
desferiam contra a porta.
Vindo de algum lugar
bem acima de onde eu me encontrava, provavelmente do alto da torre,
onde se postara – ouvia o conde chamar algo ou alguém, com sua voz
cruel e metálica. Seu apelo foi respondido, a distância e por todo
o derredor, por várias matilhas de lobos que uivavam. E, ao cabo de
alguns minutos, uma porção deles irrompeu da orla da floresta, como
a avalancha que rompe uma represa, e invadiu o pátio através da
ampla entrada do castelo.
Não consegui ouvir um
único grito da mulher. O rosnado dos lobos também durou bem pouco
tempo. Passado um instante e ainda lambendo os beiços
ensanguentados, foram saindo um por um, e deixaram o pátio.”
Bram Stoker, in Drácula
O homem avança por
estágios. Sólon (c. 640 – 553 a.C.) tem um brilhante poema sobre
isto:
Quando, no sétimo ano
de vida, o menino se desfaz do primeiro ciclo dentário, ele é ainda
bem imaturo, mal tem o domínio da fala.
Se, no entanto, Deus o
aperfeiçoar por mais sete anos, já aparecerão sinais de que agora
a juventude etá amadurecendo.
Brota-lhe a barba no
terceiro setênio, e a pele a desabrochar
acentua seu matiz; seu
corpo estica-se cheio de força.
Porém a força do
homem desenvolve-se ao máximo somente agora, no quarto setênio. O
homem realiza façanhas.
No quinto setênio o
homem procura casar-se, para que no futuro cresça uma geração
próspera.
Depois, no sexto, a
atitude moral do homem amadurece e se fortalece; futuramente, ele não
mais ocupar-se-á com obra fútil.
Por catorze anos, no
sétimo e no oitavo setênios, prosperam sua fala e seu espírito com
abundância e força.
No nono também ainda
floresce alguma coisa, mas da altura da coragem varonil emana dele a
sabedoria e a palavra.
Se Deus, porém,
completar o fim do décimo setênio, a morte lhe colherá num tempo
bem propício.
Mas nem só cronológico
é o estágio. Existem estados de sentimento, dentro de uma ou outra
idade, que produzem diferenças no homem.
Um estado de ser
convencido de suas próprias potencialidades. Um estágio de
melancolia. Um estado de derrota. Tudo isto podem ser estados, ou
estágios, dentro de um mesmo homem.
Um estágio de ser
filho. Um estágio de ser pai. Um estado de derrota. Um estado de
vitória.
Um estado de ser
irresponsável. De ser criminoso. De ser herói. De reproduzir alguma
antiga tragédia.
E um único significado
para esta profusão que é a vida de um homem: dar-lhe uma ordem para
fazer diminuir o sofrimento. Dar-lhe um sentido.
Um único sentido para
dar compaixão e dignidade para esta experiência de ser humano.
Ordenar-se, e ao mundo,
para que façamos sentido.
Ordenar-se para
reprimir a horrível face da desordem: os assassinatos, a loucura, a
miséria.
Porque o imoral
assassino surge de uma imoral sociedade, é que temos de pertencer a
esta sociedade, dar nosso contributo para ela, nosso trabalho, nossa
família, nossa honestidade, para que ela prosseguir em Justiça.
Este um homem moral, um
homem consciente, um homem que cuida de seu destino.
E a sociedade precisa
se organizar, sua lei, seu exército, sua polícia, sua justiça. Seu
Governo.
E se o Governo for
corrupto, imoral, totalitário, prepotente, pior para toda a
população.
Pior para todos os seus
filhos, pátria amada, mãe gentil.
Pior para todos os seus
filhos, roídos de miséria, roídos de deboche, em perfumados
salões.
Lá onde o Poder reina
grande.
Afunda-se em barbárie,
afunda-se em fanatismo. Uns poderosos que se cercam de capangas,
dizem-se tão preocupados com o povo, preocupam-se em salvar-se das
tramóias que armam com o dinheiro do povo.
Vivendo à grande, por
quaisquer meios, enquanto um país passa fome e injustiças grassam?
Entupindo-se de
salários, e verbas públicas, e subornos e golpes de milhões, um
preocupado em limpar o rabo do outro, pra continuar essa farra...
Depois vendo,
consternados, que mais uma montanha caiu soterrando casas, quando uma
barreira devia ser feita. Porque estes poderosos não organizaram
nada, e os bilhões que engrossaram as contas de uns bons amigos
faltaram para pagar um salário a quem tinha de fazer um trabalho.
Um preço justo, e não
este roubo vil.
E daí vocês,
delirantes, vão posar para alguma foto, vão fazer um discurso e uma
cara de compungidos, e vão achar que o dever de casa está feito, e
vocês já podem sair pra mais um conchavinho, mais uma festinha em
Paris ou no endereço de luxo que for, e que vocês são muito
bonzinhos...
Canalhas, é o que são,
canalhas, e asquerosos, e montes de merda...
Querendo, com seu
exemplo, nos demonstrar como a falta de moral é uma realidade
insofismável, e uma benesse.
E que é muito corajoso
quem aceita o seu jogo.
Aonde, bandidos,
mulheres fúteis, que viajam de jatinho para fazer compras, que
exploram e enganam os mais miseráveis, senhores e senhoras de
engenho, aonde isto foi moral e exemplo?
Brincar num salão de
beleza, luxos de barbies. E descurar plenamente a Educação de seus
filhos. Sem qualquer pensamento sombrio, sem qualquer percepção de
miséria.
Um país sem Lucrécias,
sem patrícios revoltados, só com Tarquínios Tiranos, Soberbos?
Soltar uma esmola,
quando a grande máquina de espremer o mais pobre está em pleno
funcionamento, e à toda?
Soltar uma esmola,
quando se está jogando o jogo de soltar bilhões para uns bons
amigos?
Soltar uma esmola,
quando se está levando à bancarrota o futuro, as melhores chances,
de milhões e milhões de pessoas, seres humanos sem saneamento, sem
hospital, sem polícia, sem Justiça, sem escola?
Massas para
reproduzirem este roubo bilionário, esta malversação do Patrimônio
Público. Massas para serem enganadas, para serem espoliadas até a
miséria mais negra. Até o filho morrer por falta de saneamento, em
algum hospital público que não tem médico, não tem enfermeiro, e
não tem medicamento. Sofrendo esta indignidade, e quem sabe sendo
humilhado por um funcionáriozinho mal pago. Ou por um Secretário ou
Ministro de Saúde, ou Presidente da República, que afirma que falta
pouco para esta Saúde porca atingir a perfeição.
Quanto asco, quanto
nojo, desta arrogante e estúpida ilusão. Mas segue por aí, o
Paizinho dos Pobres, o Bem Amado, o Mais Querido, o Filho do Brasil,
o Enviado do Céu, o Deus, deste culto baixo, destas prostitutas
sacerdotisas, o Estadista, o Herói que Vai Resolver Nossos
Problemas, vai nos dar uma esmola, que bom, enquanto o roubo de
milhões e bilhões passa debaixo dos nossos narizes, com nossos
advogados de milhões que defendem clientes de bilhões, perante
juízes de mais alta instância, colocados ali justamente por estes
advogados e clientes.
Ternos bem cortados, e
falas elegantes, e por dentro podridão e coisa morta.
Conquistaram o Poder,
conquistaram a Riqueza, muito bem. E pra que lhes serviu todo este
Poder, e toda esta Riqueza? E o que perderam para conquistar tanto
Poder e tanta Riqueza? O que lhes custou, em moeda de dignidade e
inocência?
Conquistaram Poder,
conquistaram Riqueza, mas fizeram um Estado e um país mergulharem na
miséria, populações animalizadas pela ignorância e a miséria,
gado para entregar seu voto e seu poder para algum coronel de
plantão.
Um coronel que vai se
grudar como pulga, ou carrapato, ou sanguessuga, por 20, 30, 40, 50
anos, se não morrer.
Como um vampiro, um
conde Drácula, eternamente se alimentando daquele sangue, sendo
sustentado por aquele povo, índice de desenvolvimento daquele povo
de país africano em guerra ou seca prolongada.
Este é dos nossos
invejáveis, intocáveis, incomuns, um dos nossos poderosos.
Vergonha. Vergonha.
Vergonha.
“Lá estava realmente
o conde, mas seu aspecto geral mostrava-o muito rejuvenescido, pois
seus cabelos brancos, assim como o bigode, tinham mudado de cor,
tornando-se muito mais escuros, com um tom de cinza bastante intenso.
As maçãs do rosto se mostravam bem mais cheias e a alvura de sua
pele deixava transparecer uma tonalidade rosada. Sua boca estava mais
rubra do que nunca, pois nos lábios brilhavam grossos pingos de
sangue ainda fresco, os quais escorriam até o queixo e ao longo do
pescoço. Até seus fundos e congestionados olhos pareciam repousar
em órbitas mais firmes, pois as pálpebras se revelavam ligeiramente
intumescidas. Parecia que todo o corpo da asquerosa criatura fora
embebido em sangue, jazendo agora como uma repulsiva sanguessuga,
exausta e entorpecida por sentir-se saturada.”
- Bram Stoker, in
Drácula
