domingo, 14 de junho de 2009

Opinião pública e poder

Parece que foi combinado: deputado federal Sergio Moraes (PTB-RS) e presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. O primeiro disse que (SIC) os jornalistas querem é enrabar eles (os políticos), e que está se lixando pra opinião pública. “Vocês batem, batem, e a gente se reelege”. Como dizem, o estilo é o homem.
Não que ele fale sem conhecimento de causa. Ele já vai pelo seu sétimo mandato público (dois mandatos de vereador, dois de deputado estadual, dois de prefeito, e este agora de deputado federal), apesar de colecionar acusações variadas, inclusive a de manter um prostíbulo com sua esposa, que aliás é prefeita de Santa Cruz do Sul (RS). Seu filho também é vereador. Conheça mais da figura em http://veja.abril.com.br/250608/p_064.shtml
Por outro lado, Gilmar. Segundo o ilustre magistrado, o juiz não pode “ouvir o sujeito da esquina”, para decidir. Podemos, angelicais sem maldade, pensar que esta declaração quer dizer que o juiz deve se manter imparcial, julgar os fatos e as provas objetivamente, e com honestidade, decidindo de acordo com as todas as forças que sua capacidade humana de entendimento possuírem, e com a consciência limpa. E com coragem, aí sim, ainda que precise afrontar qualquer pressão, seja de poderosos, seja da opinião pública. Qualquer coisa para não cometer o que seria, a seus olhos, após uma análise isenta do processo, uma injustiça.
Só que tem uma interpretação diabólica e maldosa pras palavras do presidente do Supremo, que eu infelizmente considero mais adequada. Por causa da pessoa que falou, por causa do desprezo contido na expressão “o sujeito da esquina”, por causa da consonância com a manifestação do deputado, por causa do momento de crise que o país atravessa, em que nobres representantes do Executivo, do Legislativo, e do Judiciário, externam uma indiferença olímpica pelos súditos bocós que lhes pagam os salários.
Segundo esta interpretação maldosa, Gilmar Mendes estaria defendendo que o “juridiquês” é algo muito elevado para a compreensão dos meros mortais. Estes deveriam calar as boquinhas quando o iluminado JUIZ decidisse um caso, ainda que a injustiça lhes parecesse flagrante, mas quem são eles para opinar? Não entendem as tecnicalidades que só ao juiz se revelam. Não são uns especialistas do DIREITO.
Esta conversa serve bem para interditar o exercício do poder pelo povo, isto é, a liberdade política, a democracia. Serve bem para uma sociedade fundada sob o signo da desigualdade. Hierarquia vertical, de que fala Octavio Paz, no ótimo Tempo Nublado: vice-reinados e capitanias gerais que ordenavam a sociedade “conforme a ordem descendente das classes e grupos sociais: senhores, gente do povo, índios e escravos.”
Os senhores sentiam-se e sentem-se desobrigados de prestar contas ao “sujeito da esquina”. São eles, e somos nós. Uma regra pra cada um. Aos amigos, tudo, aos inimigos, o peso da lei. Não temos a mesma origem, não temos o mesmo destino: não somos iguais, perante a lei de nossa livre escolha. São os senhores que fazem a lei, para aplicá-la no povo. Eles próprios estão acima das normas, encastelados nos privilégios, nas amizades dos comparsas com quem dividem o poder, nas interpretações camaradas, nas brechas legais, na infinidade de recursos, nas falhas e corrupções das instituições e dos sistemas...
Polícias que não investigam os roubos dos milhões e milhões, servem pra fazer a segurança dos ilustres, e pra baixar a porrada nos miseráveis e vagabundos que sujam a paisagem. Pelo menos tirá-los da vista. Juízes, fiscais e ministérios públicos, atolados no processamento das infinidades de miudezas, leis que arrancam ou concedem direitos, aos milhares: milhões berrando pro Judiciário: “queremos o nosso!!!” Muito volume, pouco trabalho: modelos que se repetem em milhões de processos, concursos públicos para milhares de servidores, milhares de estagiários...
E, depois, tem os dois meses de férias... tem o recesso, e os feriados, e os enforcados, e tem as semanas tqq (terça, quarta e quinta), e as semanas tq, e já ouvi falar em semanas t. Os desvios dos milhões, os grandes contratos, as ONGS fraudulentas, as dispensas de licitação, tudo isso é sempre da responsabilidade de algum outro. Geralmente, um Tribunal lá pra cima, uma gaveta escondida num armário trancado, com dois milhões de processos por cima... aparecem no jornal, e depois somem. Os envolvidos são transferidos de cargo, e ganham outro posto... não diminuem o salário, mas dão menos na vista... por algum tempo, só pra esquecer...
Símbolo exato: o roceiro que foi preso porque cortou uma casca de árvore pra fazer um chá. Crime ambiental, horror dos horrores, inafiançável, e o sujeito mofou na cadeia um bom tempo... enquanto isso, madeireiras asiáticas fazem contratos maravilhosos com governantes na Amazônia, toneladas de madeira saindo ao preço de quilos de banana... sem preocupação com plantio, reflorestamento, fala sério, a conversa é para adultos... pois é... e assim segue o bonde.
P.S. Depois que comecei a escrever este artigo (meus artigos servem minhas disponibilidades de tempo e inspiração), tivemos outro exemplo da série “Cago e ando pra opinião pública”; desta vez, para fechar a trinca do Poder, fornecido pelo Executivo: nosso ilustre ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em entrevista ao Globo, de 31.05.2009, quando indagado sobre as críticas que o governo vem recebendo na condução da política externa, nos informa que “política internacional é jogo de gente grande”. Está certo que ele coloca as coisas em termos de um problema dos brasileiros, “em geral”, e se inclui, ao dizer, depois, que “Estamos acostumados a pensar pequeno, no interesse do fulaninho, do primo do sicrano, se ele vai ser ou não candidato.” (isto parece uma confissão enrustida das muitas embaixadas dadas de presente para políticos que perderam mandatos, prêmios de consolação para companheiros cuja qualificação para representar o Brasil no exterior é nenhuma).
Mas, cara-pálida, quem é que toma as decisões de política internacional, não é o próprio ministro das Relações Exteriores? Ah, então, ele é a “gente grande”, que pode decidir, em oposição às criancinhas, que somos nós, gu-gu-dá-dá, vamos torcer pra ganhar uma mamadeira, e que não esqueçam de trocar as nossas fraldas...
“No jogo de gente grande, temos que tomar decisões de política global (...)”, continua Amorim, com indisfarçado orgulho. “Tenho lombo grosso. Vivi isso quando era presidente da Embrafilme”. E estamos conversados. O Governo convida o presidente do Irã, que nega o holocausto, para nos visitar, apoia a candidatura de um egípcio anti-semita para a Presidência da UNESCO, quando dispunha de um bom candidato brasileiro, nomeia um embaixador para a Coreia do Norte, do louco atômico Kim-Jong il, apoia a tirania de Chavez, a tirania de Cuba, e se ouvir críticas à condução de sua política externa, responde: “a opinião pública não entende, mas política internacional é um jogo de gente grande...”. Amorim, com sua longa experiência, já foi presidente da Embrafilme, conhece o jogo de gente grande que é jogado no país: melhor puxar o saco do chefinho, do “nosso líder” (é como Amorim se refere ao presidente da república), que prestar contas à opinião pública, debater, explicar os motivos, corrigir, responder... “Povo” é abstração, que se invoca no palanque; de concreto, mesmo, é o “nosso líder”, o homem da caneta que exonera e nomeia...
Tentando não ser freudiano demais, todos estes atos falhos de nossos ilustres representantes do Poder Público traem esta cultura comum de nossa sociedade dividida em senhores e resto. Quem chega lá, porque fez uma provinha de concurso público, porque ganhou uma indicação de um parente ou de um amigo, ou porque fez um curralzinho eleitoral, vai repetir os mesmos comportamentos de todos. Chegar lá, não significa atingir um entendimento (consciência), e uma prática que provoquem uma mudança real de paradigma: da mentalidade que dispõe do recurso público como se fosse privado (patrimonialismo – mais claramente: fazer na vida pública o que se faz na privada), para o sistema de real igualdade perante a lei, livremente escolhida. Já falei sobre isso, não vou me estender de novo sobre o ponto.
Para terminar: será o fundo do poço? É certo que a situação parece bem terrível, para os que estão conscientes, mas a vida segue, nos nossos filhos e nos filhos de nossos filhos, e a vida carrega consigo a esperança. Atingir o fundo do poço é doloroso, mas a dor faz despertar o desejo de mudança. Afinal, sempre fomos uma sociedade escravocrata, não ia ser de um dia para o outro, num passe de mágica, escrevendo uma lei num papel, que iríamos nos transformar num Reino de Liberdade e Esplendor. Ia precisar tempo, ia precisar dor, consciência, trabalho... nada disso pode alquebrar o espírito humano, tudo isso é estímulo para o espírito forte. O que seria de Hércules se não fossem os doze trabalhos?
Chegamos ao fundo do poço? É porque paramos de cair. Podemos nos reerguer, dar conta da situação, planejar a escalada para o topo. Não que não haja perigos e retrocessos. Temos a imprensa livre, vamos mantê-la (embora não seja perfeitamente livre, concedo, mas vamos brigar para manter a liberdade que tem, vamos brigar para ampliá-la. Perfeição é ocioso discutir, porque é impossível de alcançar. E que bom que é assim, que monotonia seria, se não tivéssemos nada por que lutar). Vamos lutar e cobrar para que os casos de corrupção sejam punidos, para que as instituições funcionem, para que tenhamos mais educação, mais saúde, mais segurança. Vamos estar atentos e lutar para que não nos roubem de novo (mais ainda), a democracia, o estado de direito, a Justiça...
O.k., paro por aqui. E esclareço que sei que existem o policial bom e honesto, o juiz bom e honesto, e o advogado, e o jornalista, e o ministro, e o político, iguaizinhos, em todas as profissões e aglomerações humanas. Minha crítica não é para A ou para B, mas para instituições, e sistemas, e mentalidade, e cultura. Quando parece que falo de todos os policiais, ou de todos os juízes, é efeito da retórica, para dar mais força a algum ponto.

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