segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Pensando Hitler

Se isto é um homem -
 
"Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara." 
 
(Primo Levi, tradução de Simonetta Cabrita Neto)



Hitler foi um monstro? Ou Hitler foi um homem?

É fácil desumanizar o inimigo. Odiar, é fácil.

O caminho largo. Mas foi dito: atravessai o caminho estreito.

Foi dito: Amai o inimigo.

O inimigo é o bode expiatório conveniente.

Há problemas no mundo. Sempre os há.

Há injustiça. Há miséria.

Os tempos são sempre difíceis.

Há muitos motivos para sentir-se mal, infeliz.

Há muitas justificativas para odiar.

Todos se sentem possuídos por iras santas. Todos estão possuídos pela fé dos fanáticos.

Sentem-se cobertos de razão. Sentem-se plenamente justificados para empunhar um rifle, ou uma foice, ou um martelo, ou uma corda, e promover um linchamento ali mesmo, na rua.

Pode ser o judeu dos nazistas, ou o fazendeiro dos comunistas, ou o negro da Ku Klux Klan.

Pode ser o muçulmano do cruzado, ou o infiel do jihadista.

O que reúne qualquer fanático é a disposição de “limpar o mundo”, ou “tirar o mal do mundo”, promovendo alguma execução pelas ruas.

Enforcando. Amarrando num poste e tacando fogo.

Ou pregando numa cruz.

O Regime do Terror, no qual se compraz o baixo instinto do homem.

Também não precisa ser uma morte tão literal. Pode bastar a intenção, o virar as costas.

Pode ser uma morte social, proscrever do círculo.

Negar a comida; negar o trabalho; negar o apoio.

Deixar caído pela rua, entregue à própria sorte.

Afinal, devia ser um dos que mereciam mesmo sofrer, não é mesmo? Um dos judeus, um dos negros, um dos infiéis, um dos muçulmanos...

É uma lógica tão terrível...

Era um dos drogados... um dos garotos de rua... um dos pivetes...

Era um mal encarnado.

Era um desumano.

Era Hitler?

E não se percebe, que transferindo o mal para fora de si, apaga-se a consciência do mal interior. Deixa-se de estar em guarda contra ele.

Os perseguidores, os desumanizadores, vão se tornando outros tantos pequenos hitleres. Trágica ironia!

Os que queimavam bruxas e demônios tornavam-se bruxas e demônios eles mesmos... Tornavam bem reais aquelas cenas de infernos que atormentavam suas mentes, e que julgavam combater!

Enquanto que, se pudéssemos sempre enxergar nossos companheiros homens como homens, negaríamos sempre a possibilidade de campos de concentração e holocaustos.

Negaríamos sempre roubar uma infeliz família, tirar-lhe o teto, tirar-lhe o pão, tirar-lhe as roupas, e enviá-la para uma triste morte, separada dos seus, explorada até virar um triste esqueleto, e aí ser eliminada.

E tantas forcas. E tantas cruz.

E paredão de fuzilamento.

Hitler, o pobre louco infeliz... Por que não podemos simplesmente reconhecê-lo?

Por que temos de idealizá-lo como um deus? Temê-lo, e odiá-lo, como a um demônio?

O Poder, com o qual permitimos que se investisse, é que produziu a fatal ilusão.

Sem Poder, seria apenas mais um infeliz idiota.

Com Poder, travestiu-se com todas as Glórias, e com todo o Opróbrio na hora da Queda.

Com o Poder, o patético espetáculo da camarilha dos puxa-sacos, podendo jurar que cada palavra do Grande Líder é um sinal de uma suma sapiência! Chegando a tirar a própria vida, pelo Grande Líder, em alguns casos de fanatismo mais extremo.

Para tirar as vidas alheias, nem precisa ser tão fanático...

E o outro lado da moeda deste exagero, está claro, é ver em Hitler algum monstro, demônio...

O que permite que se dê de ombros, fatalisticamente: “Nada podemos fazer; é algo de sobrenatural, as portas de algum inferno se abriram e nos enviaram esta praga”.

E que se perca a chance de perceber que era apenas um homem, recheado de poderes.


E, que se não pudesse se rechear de poderes, permaneceria sendo apenas um homem, particularmente ridículo.

E o melhor: não se teria motivos para abjetamente bajulá-lo, ou temê-lo, ou odiá-lo.

Poderíamos rir na cara dele quando viesse com discursos malucos, e puxar seu bigodinho, e despachá-lo com um pontapé na bunda...

Mas aí, claro, teríamos conquistado nossa dignidade de homens.

E o Holocausto não teria acontecido.

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