Se isto é um homem -
"Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara."
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara."
(Primo Levi, tradução de Simonetta Cabrita Neto)
Hitler foi um monstro?
Ou Hitler foi um homem?
É fácil desumanizar o
inimigo. Odiar, é fácil.
O caminho largo. Mas
foi dito: atravessai o caminho estreito.
Foi dito: Amai o
inimigo.
O inimigo é o bode
expiatório conveniente.
Há problemas no mundo.
Sempre os há.
Há injustiça. Há
miséria.
Os tempos são sempre
difíceis.
Há muitos motivos para
sentir-se mal, infeliz.
Há muitas
justificativas para odiar.
Todos se sentem
possuídos por iras santas. Todos estão possuídos pela fé dos
fanáticos.
Sentem-se cobertos de
razão. Sentem-se plenamente justificados para empunhar um rifle, ou
uma foice, ou um martelo, ou uma corda, e promover um linchamento ali
mesmo, na rua.
Pode ser o judeu dos
nazistas, ou o fazendeiro dos comunistas, ou o negro da Ku Klux Klan.
Pode ser o muçulmano
do cruzado, ou o infiel do jihadista.
O que reúne qualquer
fanático é a disposição de “limpar o mundo”, ou “tirar o
mal do mundo”, promovendo alguma execução pelas ruas.
Enforcando. Amarrando
num poste e tacando fogo.
Ou pregando numa cruz.
O Regime do Terror, no
qual se compraz o baixo instinto do homem.
Também não precisa
ser uma morte tão literal. Pode bastar a intenção, o virar as
costas.
Pode ser uma morte
social, proscrever do círculo.
Negar a comida; negar o
trabalho; negar o apoio.
Deixar caído pela rua,
entregue à própria sorte.
Afinal, devia ser um
dos que mereciam mesmo sofrer, não é mesmo? Um dos judeus, um dos
negros, um dos infiéis, um dos muçulmanos...
É uma lógica tão
terrível...
Era um dos drogados...
um dos garotos de rua... um dos pivetes...
Era um mal encarnado.
Era um desumano.
Era Hitler?
E não se percebe, que
transferindo o mal para fora de si, apaga-se a consciência do mal
interior. Deixa-se de estar em guarda contra ele.
Os perseguidores, os
desumanizadores, vão se tornando outros tantos pequenos hitleres.
Trágica ironia!
Os que queimavam bruxas
e demônios tornavam-se bruxas e demônios eles mesmos... Tornavam
bem reais aquelas cenas de infernos que atormentavam suas mentes, e
que julgavam combater!
Enquanto que, se
pudéssemos sempre enxergar nossos companheiros homens como homens,
negaríamos sempre a possibilidade de campos de concentração e
holocaustos.
Negaríamos sempre
roubar uma infeliz família, tirar-lhe o teto, tirar-lhe o pão,
tirar-lhe as roupas, e enviá-la para uma triste morte, separada dos
seus, explorada até virar um triste esqueleto, e aí ser eliminada.
E tantas forcas. E
tantas cruz.
E paredão de
fuzilamento.
Hitler, o pobre louco
infeliz... Por que não podemos simplesmente reconhecê-lo?
Por que temos de
idealizá-lo como um deus? Temê-lo, e odiá-lo, como a um demônio?
O Poder, com o qual
permitimos que se investisse, é que produziu a fatal ilusão.
Sem Poder, seria apenas
mais um infeliz idiota.
Com Poder, travestiu-se
com todas as Glórias, e com todo o Opróbrio na hora da Queda.
Com o Poder, o patético
espetáculo da camarilha dos puxa-sacos, podendo jurar que cada
palavra do Grande Líder é um sinal de uma suma sapiência! Chegando
a tirar a própria vida, pelo Grande Líder, em alguns casos de
fanatismo mais extremo.
Para tirar as vidas
alheias, nem precisa ser tão fanático...
E o outro lado da moeda
deste exagero, está claro, é ver em Hitler algum monstro,
demônio...
O que permite que se dê
de ombros, fatalisticamente: “Nada podemos fazer; é algo de
sobrenatural, as portas de algum inferno se abriram e nos enviaram
esta praga”.
E que se perca a chance
de perceber que era apenas um homem, recheado de poderes.
E, que se não pudesse
se rechear de poderes, permaneceria sendo apenas um homem,
particularmente ridículo.
E o melhor: não se
teria motivos para abjetamente bajulá-lo, ou temê-lo, ou odiá-lo.
Poderíamos rir na cara
dele quando viesse com discursos malucos, e puxar seu bigodinho, e
despachá-lo com um pontapé na bunda...
Mas aí, claro,
teríamos conquistado nossa dignidade de homens.
E o Holocausto não
teria acontecido.
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