sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Leviatã

Jó, 40, 20 a 42, 6:



20.
Poderás tu fisgar Leviatã com um anzol, e amarrar-lhe a língua com uma corda?

21.
Serás capaz de passar um junco em suas ventas, ou de furar-lhe a mandíbula com um gancho?

22.
Ele te fará muitos rogos, e te dirigirá palavras ternas?

23.
Concluirá ele um pacto contigo, a fim de que faças dele sempre teu escravo?

24.
Brincarás com ele como com um pássaro, ou atá-lo-ás para divertir teus filhos?

25.
Será ele vendido por uma sociedade de pescadores, e dividido entre os negociantes?

26.
Crivar-lhe-ás a pele de dardos, fincar-lhe-ás um arpão na cabeça?

27.
Tenta pôr a mão nele, sempre te lembrarás disso, e não recomeçarás.

28.
Tua esperança será lograda, bastaria seu aspecto para te arrasar


Jó, 41


1.
Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem lhe resistiria face a face?

2.
Quem pôde afrontá-lo e sair com vida, debaixo de toda a extensão do céu?

3.
Não quero calar (a glória) de seus membros, direi seu vigor incomparável.

4.
Quem levantou a dianteira de sua couraça? Quem penetrou na dupla linha de sua dentadura?

5.
Quem lhe abriu os dois batentes da goela, em que seus dentes fazem reinar o terror?

6.
Sua costa é um aglomerado de escudos, cujas juntas são estreitamente ligadas;

7.
uma toca a outra, o ar não passa por entre elas;

8.
uma adere tão bem à outra, que são encaixadas sem se poderem desunir.
 
9.
Seu espirro faz jorrar a luz, seus olhos são como as pálpebras da aurora.
 
10.
De sua goela saem chamas, escapam centelhas ardentes.
 
11.
De suas ventas sai uma fumaça, como de uma marmita que ferve entre chamas.
 
12.
Seu hálito queima como brasa, a chama jorra de sua goela.
 
13.
Em seu pescoço reside a força, diante dele salta o espanto.
 
14.
As barbelas de sua carne são aderentes, esticadas sobre ele, inabaláveis.
 
15.
Duro como a pedra é seu coração, sólido como a mó fixa de um moinho.
 
16.
Quando se levanta, tremem as ondas, as vagas do mar se afastam.
 
17.
Se uma espada o toca, ela não resiste, nem a lança, nem a azagaia, nem o dardo.
 
18.
O ferro para ele é palha; o bronze, pau podre.
 
19.
A flecha não o faz fugir, as pedras da funda são palhinhas para ele.
 
20.
O martelo lhe parece um fiapo de palha; ri-se do assobio da azagaia.
 
21.
Seu ventre é coberto de cacos de vidro pontudos, é uma grade de ferro que se estende sobre a lama.
 
22.
Faz ferver o abismo como uma panela, faz do mar um queimador de perfumes.
 
23.
Deixa atrás de si um sulco brilhante, como se o abismo tivesse cabelos brancos.
 
24.
Não há nada igual a ele na terra, pois foi feito para não ter medo de nada;

25.
afronta tudo o que é elevado, é o rei dos mais orgulhosos animais.




Jó, 42

1.
Jó respondeu ao Senhor nestes termos:

2.
Sei que podes tudo, que nada te é muito difícil.

3.
Quem é que obscurece assim a Providência com discursos ininteligíveis? É por isso que falei, sem compreendê-las, maravilhas que me superam e que não conheço.

4.
Escuta-me, deixa-me falar: vou interrogar-te, tu me responderás.

5.
Meus ouvidos tinham escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram.

6.
É por isso que me retrato, e arrependo-me no pó e na cinza.



Salmos, 74, 12-14

No entanto, Deus é meu rei desde sempre, o autor de vitórias na terra.
Fendeste o mar com tua força
e esmagaste as cabeças dos dragões sobre as águas,
esmigalhaste as cabeças do monstro Leviatã,
e o deste por alimento aos animais do deserto.




Ultimamente o demônio Leviatã tem andado em voga nestes Tristes Trópicos. Cada dia vemos uma notícia relacionada. Na quarta-feira, dia 25.08.2010, o jornal O Globo publicava que o juiz federal Antonio Claudio Macedo da Silva determinou que a Receita entregasse ao vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge Caldas Pereira, as informações sobre a sindicância que realizava para apuração do vazamento de dados sigilosos do tucano. Em trecho de sua decisão, o Magistrado escreveu: “Não se pode admitir um Estado Leviatã, no qual tudo que é sigiloso vaza para a imprensa. (...) Penso que o Brasil convive há muito tempo com janelas quebradas na vizinhança da proteção ao sigilo, havendo uma relação promíscua entre setores da administração pública e setores da imprensa.”

Coincidentemente, eu próprio havia escrito um artigo comentando este caso, “Quebra de Sigilo”, publicado em 27.07.2010, e ilustrado com o frontispício clássico do livro Leviatã, de Thomas Hobbes: o soberano monstruoso, gigantesco, formado pela junção de seus súditos, dominando sobre o território do Estado. Eis o link do artigo: http://sinatti.blogspot.com/2010/07/quebra-de-sigilo.html

Logo na esteira da decisão judicial que mandou entregar à vítima do vazamento de informação os dados da investigação da Receita, tivemos outras notícias do uso dos recursos do Estado para perseguir adversários políticos. Na quinta-feira, O Globo estampava na primeira página a manchete: “Receita: mais três ligados a Serra tiveram sigilo violado”; “As violações aconteceram em 16 minutos, em um computador da Receita, no mesmo dia da espionagem contra o vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge. Os vazamentos constam da investigação da Receita – que silenciou sobre o caso.”

Hoje, sexta-feira, a manchete do Globo é: “Núcleo da Receita no ABC devassou dados de 140”. “Além das quatro pessoas ligadas ao tucano José Serra, analistas da Delegacia da Receita em Mauá (SP) devassaram os dados fiscais de 140 contribuintes, entre eles personalidades e empresários que vivem longe do ABC paulista. (...) Alegando sigilo, a Receita nada esclareceu.”

Na mesma edição do Globo, lemos que “a mulher de Serra vê perseguição à sua família e pede punição”. Mônica Serra declarou: “Você teria uma ditadura, se isso passasse em branco e não acontecesse nada. Se nada for feito, estaremos em uma ditadura”.

Parece que já estamos. Ou já se esqueceu do escândalo dos aloprados? Foi o mesmo José Serra a vítima, quando disputava o governo estadual de São Paulo, em 2006. Integrantes da campanha do candidato do PT, Aloísio Mercadante, foram flagrados pela polícia com R$ 1,7 milhão, em dinheiro vivo, para comprar uma declaração falsa com a qual montariam um dossiê contra Serra. Confira a imagem edificante:



O resultado? Não pegou nada, claro. Este ano, um dos aloprados, Valdebran Padilha, foi preso e indiciado pela Polícia Federal, nas investigações de um outro esquema, de fraude em licitações da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), e do Ministério das Cidades. Aloísio Mercadante, que se beneficiaria do dossiê contra Serra? Este alegou que não sabia de nada, e tá muito bom. Vida que segue, na Brasilônia.

Mas isto é notícia velha. Voltemos à edição de hoje, de O Globo. A candidata do PV à presidência, Marina Silva, considerou uma baixaria os vazamentos de dados fiscais. Segundo Marina, “Uma campanha já é um prenúncio daquilo que se fará quando se chegar ao poder, e quem não respeita a legislação, as instituições antes de ganhar, que garantia teremos de que respeitará depois que chegar lá?”. Boa, Marina.

E qual foi a reação do PT, a tudo isso? Também está lá no Globo de hoje: “O presidente nacional do PT, José Eduardo Dutra, elevou o tom ontem e anunciou que o partido decidiu ingressar na Justiça com duas ações contra o candidato do PSDB à presidência, José Serra (...) Serra será processado na esfera criminal, por injúria e difamação, e na esfera cível, por danos morais.”

Serra tinha dito, sobre o caso do vazamento, que desejam prejudicá-lo eleitoralmente. “Esse é um crime contra a Constituição e com finalidade claramente eleitoral. A candidatura e a candidata se beneficiam dele. A Dilma Rousseff tem que dar explicações sobre quem são os responsáveis pelo crime, pois o país precisa se defender disso”, afirmou o candidato do PSDB.

A candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff, por seu turno, seguindo a linha de seu partido, “chamou de factoide e calúnias as acusações de Serra”.

E ficamos por isso mesmo, como temos ficado. As notícias não páram de mostrar o avanço eleitoral de Dilma, e isso é que importa. Ela e seu partido é que vão “chegar lá”, montar no Poder, decidir quem é que leva os cargos em comissão, os aumentos, as verbas... e não é pouca coisa não, são quase 40% da oitava economia do mundo, só de tributos... com um poder desses nas mãos, que importa o choro de perdedores? Não péga nada, não afeta em nada a popularidade, não ameaça em nada a campanha... é pra meia dúzia ler no jornal, comentar, escrever um artigo num blog, lembrar do Leviatã de Thomas Hobbes, ter um pesadelo com o demônio marinho, ou sentir-lhe os tentáculos, os dentes, caso seja uma das vítimas de uma máquina infernal de Kafka...



Em artigo publicado no Globo de 18.08.2010 (http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2010/08/18/segunda-ameaca-317049.asp), a jornalista Miriam Leitão também alertou sobre este uso da máquina pública para operações ilegais. Reproduzo um trecho do artigo, que faz menção a reportagens recentes da revista Veja sobre o tema:

“Nas últimas duas semanas, a “Veja” trouxe entrevistas de pessoas diretamente ligadas ao governo e que trabalham em múltiplos porões de campanha. O que eles demonstram é que aquele grupo de aloprados do Ibis não foi um fato isolado. Virou prática, hábito, rotina no Partido dos Trabalhadores. Geraldo Xavier Santiago, ex-diretor da Previ, contou à revista que o fundo de pensão, uma instituição de poupança de direito privado cuja função é garantir a aposentadoria dos funcionários do Banco do Brasil, era usada para interesses partidários. Com objetivos e métodos escusos. Virou uma central de espionagem de adversários políticos. Agora, é o sindicalista Wagner Cinchetto que fala de uma central de produção de espionagem e disparos contra adversários; não apenas tucanos, mas qualquer um que subisse nas pesquisas.”

Denúncias graves, extremamente graves. Mas que caíram no vazio, como tantas outras. O governo de Lula e do PT ficará marcado pela História como aquele da nossa desmoralização, como nação. Nunca antes na História desse país, a corrupção e o descaramento ousaram tanto.

Símbolo marcante desses nossos tempos foi o caso do deputado federal Sergio Moraes, relator no Conselho de Ética da Câmara dos deputados em um processo contra o também deputado Edmar Moreira, que se notabilizou por ter um castelo avaliado em R$ 25 milhões, registrado em nome dos filhos. Deleitem-se com a bela visão:









Pois Sergio Moraes, mesmo sendo relator do processo, não se avexou de mandar às favas a imparcialidade, e fazer declarações de apoio ao deputado do castelo. Pressionado então pelos jornalistas, Moraes saiu-se com a frase imortal: “Eu estou me lixando pra opinião pública! Vocês batem, mas a gente se reelege!”

E o que é que deu, dessa história toda? Sergio Moraes foi tirado da relatoria do caso, que já foi julgado. Em 1 de julho de 2009, por nove votos a quatro, o Conselho de Ética rejeitou o pedido de cassação de Edmar Moreira. Ele e seu colega Sergio Moraes permanecem na Câmara, exercendo seus mandatos.

Vejo ainda esta referência interessante na Wikipédia, sobre Edmar Moreira:

“Depois ter sido absolvido pela Câmara dos Deputados, Edmar Moreira decidiu perseguir a imprensa que fez cobertura ao Caso do Castelo para pedir idenização para ficar mais rico. Moveu 44 ações contra 14 veículos e 38 jornalistas e apresentadores de televisão (entre eles, Jô Soares, Rede Globo; José Luiz Datena, Marcelo Tas, Danilo Gentili e Boris Casoy, Rede Bandeirantes; Joaquim Gil Castelo Branco Filho, Rede Record; Carlos Nascimento e Hebe Camargo, SBT)”

Ou seja, estamos anestesiados, hipnotizados, entregues à sanha de Leviatã. Podemos ser deglutidos a qualquer momento, como passarinho descendo pela garganta da cobra.

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