
Há muito tempo vive-se uma guerra civil localizada dentro do Brasil. Falo das favelas dominadas por bandos de homens, bem armados, que durante muito tempo não sofreram resistência por parte dos governos que se sucediam no Rio de Janeiro, e aproveitaram esta omissão das autoridades para se imporem como tiranos nos seus feudos, com um poder de vida e de morte sobre aquelas populações à sua volta.
A vida numa favela é aprender bem cedo que a vida vale pouco, que a boca tem de ficar fechada, os olhos têm de aguentar tudo.
Experimente não servir ao traficante. Experimente ele desconfiar de você.
Temos visto crimes bárbaros, estampados nas capas dos jornais populares, comentados em conversas e leituras. Mulheres decapitadas, crianças com as mãos furadas à bala. A Lei do Terror, suportada dentro do território nacional, imposta aos cidadãos menos favorecidos.
E tanto tempo convivemos com isso, que até deixou de espantar. Lei não existe, nesses morros, só o arbítrio do traficante. Polícia, nesses morros, é pra extorquir e humilhar, cometer também suas atrocidades. Receber dinheiro de traficante, garantir os negócios. Polícia é igual a bandido, nesses morros, ou é pior, porque usa uma farda e um distintivo do Estado, é a representante do Estado.
Temos testemunhado isto, também: a bizarria de algumas manchetes sobre a nossa polícia. Os dois policiais que liberaram o carro destruído do atropelador do filho de uma atriz; o comandante, encarregado de investigar estes dois, apanhado dando cobertura pra ladrões de fios de cobre, no meio da rua; um certo capitão Bizarro (este é o nome), envolvido no trágico assassinato de uma figura conhecida, Evandro João Silva, coordenador do Afro Reggae, liberando os assassinos logo em seguida ao crime, ficando com a jaqueta e o par de tênis da vítima como pagamento... E isto foi filmado pelas câmeras na rua!
E tudo isso sem contar as seguidas execuções, torturas, espancamentos, em que a polícia se mostrou envolvida, ao longo desses anos.
Simplesmente não conseguimos montar uma polícia digna desse nome. Digo, é claro, em termos gerais, mas a recorrência dos crimes, com que convivemos, a recorrência dos crimes dentro também da própria polícia, a recorrência da impunidade em nossas Cortes de Justiça, mostra inegavelmente que não somos bem sucedidos na tarefa de nos fornecer, e de fornecermos aos nossos filhos, segurança.
Uma investigação deficiente ou nula. Na revista Veja teve uma edição de capa assombrosa (edição 1686, de 07.02.2001), dizendo que de cada cem assassinos, ladrões e estupradores, a polícia prende 24, a Justiça condena 5, e só 1 cumpre pena até o fim. Que casos serão esses, em que se cumpre pena até o fim? O sujeito bêbado no bar, à frente de todos, que discute com o outro, e tem um revólver, e faz uma besteira? Ou aqueles casos de celebridade, em que se empenham todos os recursos, para aparecer bem na mídia? Os outros 99% de homicidas, ladrões e estupradores ficam no barato, mesmo? Então, no Brasil, é preciso ser um bocado azarado mesmo, ou descuidado, pra cometer um crime e cumprir a pena, até o fim.
Falta treinamento, falta disciplina. Muitos inquéritos empacam nas tecnicalidades exploradas por advogados. Por que continuam se repetindo? Por que os Tribunais não definem as normas do inquérito, e os responsáveis pelo inquérito não são obrigados a aplicá-las, sendo punidos se não o fizerem? Chega de ver impunidade! Chega de ver o bandido rindo, aquele que todos sabem que é culpado, mas que não vai pagar por uma falha técnica de processo!
Mas aqui parece que é bom ter uma polícia tão ineficiente e corrupta, e tudo se mantém assim. Os Tribunais não vão cobrar dos investigadores as falhas por eles cometidas nos inquéritos. Fica tudo como antes, no quartel do Abrantes. É melhor pra corrupção, que não haja mesmo muita inteligência na polícia... Já pensou o quanto podia atrapalhar os bons negócios, ver um monte de investigadores inteligentes, cruzando movimentações financeiras inexplicáveis, apertando lavanderias de muito dinheiro, controlando com eficiência a passagem pela fronteira? E recebendo crédito por isso, progredindo na carreira, a cada prisão feita? Belo sonho...
Por aqui, polícia é só músculo, vistoso, pra aparecer na foto do jornal. Fardas pretas, coturnos, metralhadora em punho, caveirão... É a polícia da guerra, contradição em termos. Polícia não é pra guerrear, polícia é pra investigar e prender.
Mas ficamos mandando nossos jovens pra uma guerra, uma guerra civil, contra outros habitantes do país, e uma guerra sem fim. Mata-se um traficante, vem outro, e a fonte não seca, armas e drogas continuam chegando, continuam tendo quem as receba e faça bons negócios com elas. Durante todos estes anos tem sido assim. Enxugar gelo, ao preço de sangue. Enquanto isso, a polícia se brutaliza e se sente todo-poderosa, além das leis do seu país. E daí vem mais corrupção, e todo o círculo vicioso...
O resultado da política de guerra tem sido nulo e negativo, no conquistarmos uma situação de segurança. Mas em termos propagandísticos, tem sido um sucesso. Os jovens policiais-soldados desfilam nos carros com os fuzis apontados pra fora, aparecem em filmes de sucesso, cantados em prosa e verso, Osso duro de roer / Pega um pega geral / Também vai pegar você... e a nova onda agora, no dia das crianças, foi a miniatura do Caveirão, pra presentear os pimpolhos! E símbolos são criados para estes guerreiros, uma caveira atravessada por um punhal, motivo de deboche até, vejam só, de Silvester Stalone, o velho Rambo, quando esteve recentemente no Brasil pra fazer um filme...
Tudo para gáudio de nossa cultura comodista e fascista. O pensamento simplista: “O problema da violência, dessa corrupção generalizada desse país, é fácil de resolver: PAU NELES! Quebra esse desgraçado, esse diferente, esse favelado! Isso vai me proteger, eu vou me sentir mais seguro, mais aliviado desse medo que eu sinto, dessa minha frustração de ver os milhões e bilhões sendo desviados pelos poderosos, pessoas incomuns, e ficar nessa impunidade”.
Essa cultura acredita que vai ter um Rambo pra nos salvar. Está morrendo de medo, e morrendo de ódio, e nenhum desses sentimentos vai lhe servir para nada. Apenas um raciocínio eficiente o faria. Para pensar uma polícia que cumprisse sua missão com dignidade, e exigisse essa polícia, e não se contentasse com menos.
Que exigisse, e conquistasse para si e para seus filhos, a punição legal para os criminosos, e a segurança.
Mas vamos ter de esperar sentados, torcendo pra não tomar uma bala perdida ou encontrada na cara, até que uma mudança na Educação venha melhorar as bases do nosso país.
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