sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Revolução Fisiológica - parte 2





No artigo “A Revolução Fisiológica” http://sinatti.blogspot.com/2010/08/revolucao-fisiologica.html descrevi o que, para mim, representa uma ameaça concreta à nossa democracia, a partir de um eventual governo Dilma, se levado a cabo o plano de instauração de uma “mini-constituinte” para passar uma reforma política estabelecendo o voto em lista fechada.

Ao final do artigo, prometi que voltaria ao tema, “para analisar os mecanismos de implantação das neo-ditaduras”. É o que venho tentar agora.

Como disse antes, o modelo anterior de instauração de ditaduras, através de golpes armados, está em baixa. Em nossa região, a América Latina, ainda temos vivo um exemplo desses, Cuba, onde Fidel Castro liderou um grupo de guerrilheiros para derrubar Fulgêncio Batista, em 1959. O exemplo de Castro incendiou corações e mentes de jovens esquerdistas, pelo nosso continente. Os próprios cubanos trataram de exportar o know-how de sua guerrilha para muitos desses jovens. Porém, os tempos eram outros.

Pra começar, Fulgêncio Batista era outro ditador, no poder desde 1952, odiado pela maioria dos cubanos. A guerra fria corria solta, com um mundo polarizado entre americanos e soviéticos, sem meio termo. Tempos de radicalismo romântico.

Porém, como sabido, radicalização chama radicalização, o medo conduz ao ódio, e a reação conservadora multiplicou as quarteladas pelo continente. Vivemos também nossa própria ditadura militar, de 1964 a 1985, 21 longos anos sem liberdade, e com tortura, desaparecidos, exilados, assassinados... o pacote completo.

A via das armas não pareceu coisa boa, afinal. O tiro saíra pela culatra. Cuba manteve-se um caso isolado, de ditadura de esquerda que se sustentou, no continente americano. Alguém pode lembrar o caso da Nicarágua e sua Revolução Sandinista, de 1979. Mas lá foram convocadas eleições já em 1984, e nas eleições de 1990 o partido da Frente Sandinista de Libertação Nacional foi derrotado pela União Nacional de Oposição.

Agora, porém, o esquerdismo ditatorial renasce no continente, valendo-se de novos métodos de implantação. Não mais a luta armada. A via, agora, é a do voto, ganhando eleições com um discurso demagógico, mas que por estas plagas mantém intacto o seu poder de sedução. Promete-se tudo, principalmente ganhar dinheiro sem precisar trabalhar. O famoso “almoço grátis”. Só é preciso ir aumentando os poderes dos nosso abnegados salvadores, para que eles possam combater os inimigos, os traidores, que impedem o povo de atingir este Reino da Fartura: as elites, os imperialistas ianques, os críticos e opositores. Basicamente, é isto.

Este novo modelo de ditadura, em que se usa a democracia para matar a democracia, ganhou seu grande impulso no continente com a vitória eleitoral de Hugo Chavez na Venezuela, em 1999.

Coincidentemente, a experiência pessoal de Chávez refletiu esta passagem do modelo de instauração de ditaduras através da força das armas, para este novo modelo, mais subreptício e sutil, de mudar o regime por dentro, utilizando os recursos do Estado.

Em 1992, o então tenente-coronel Chávez liderou 300 homens num frustrado golpe de Estado contra o presidente eleito Carlos Andrés Péres. Chávez passou dois anos preso, sendo anistiado pelo novo presidente, Rafael Caldera Rodriguez.

Só um parêntese: existe aqui um paralelo com a trajetória política de Hitler, ninguém menos. O austríaco também tentou um golpe malogrado, o chamado Putsch da cervejaria, em novembro de 1923. Em dezembro de 1924 foi anistiado, considerado inofensivo. O resto, já se sabe...

Voltando a Chavez: com a notoriedade conquistada, o sargentão alcança a presidência da Venezuela, em 1999, com 56% dos votos. Não perde tempo. Aproveitando a força política do seu início de governo, em 2 de fevereiro de 1999 decreta a realização de um referendo para a convocação de uma Assembléia Constituinte. Em agosto de 1999, Chavez fecha o Congresso, no qual a oposição tinha uma pequena maioria, e transfere suas funções para a Constituinte, na qual seus partidários conquistaram 121 de 131 cadeiras. Em dezembro de 1999, 70% dos venezuelanos aprovam a nova Constituição, através de um plebiscito.

E o que a nova Constituição trazia? Além das tradicionais iscas populistas, aumentava os poderes do Chefe do Executivo, e o espaço de intervenção do Estado. Surpresa, surpresa... abria-se espaço para a reeleição de Chavez, agora, depois de novo plebiscito, ilimitada.

Em suma, instaurava-se um novo autoritarismo, dessa vez “sacralizado pela vontade do povo”. Muito esperto, isso. Utiliza-se um mecanismo democrático, para assassinar a democracia.

O comentarista político Merval Pereira, em artigo no jornal O Globo, “Ação Arriscada”, eis o link http://arquivoetc.blogspot.com/2009/09/merval-pereira-acao-arriscada.html, identificou na manobra de Chavez a inspiração do filósofo italiano Antonio Negri.

Reproduzo trecho do artigo, de setembro de 2009, e que trata do então recente imbróglio envolvendo a tentativa de golpe pelo presidente de Honduras, Manuel Zelaya, e sua consequente deposição. Há uma referência também à tentativa de Alvaro Uribe, então presidente da Colômbia, de fazer uma alteração constituinte para conseguir um terceiro mandato, manobra abortada pela Suprema Corte colombiana, felizmente.

Vamos ao artigo:

(...)está claro que o presidente Manuel Zelaya, a exemplo de outros governantes da região, como Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, seguindo os passos da “revolução bolivariana” de Chávez, perseguia a mudança da Constituição de seu país em busca da possibilidade de reeleição.

A base teórica da manipulação dos referendos para mudar constituições e dar mais poderes aos presidentes da ocasião é o livro “Poder Constituinte — Ensaio sobre as alternativas da modernidade”, do cientista social e filósofo italiano Antonio (Toni) Negri.

Essa influência foi admitida pelo próprio Chávez em um de seus programas radiofônicos ainda em 2006, quando ele anunciou que estava entre eles “um filósofo, escritor e ativista italiano, Toni Negri. (…) Por aqui temos seguido suas teses, Toni Negri: O poder constituinte”.

Para Negri, “ o poder constituinte é uma potência criadora de ser (...) e apenas o processo constituinte, as dimensões determinadas pela vontade, a luta e a decisão sobre a luta definem os sentidos do ser”.

O filósofo italiano diz que “o medo despertado pela multidão” faz com que o poder constituído queira impedir sua manifestação através da constituinte: “A fera deve ser dominada, domesticada ou destruída, superada ou sublimada”.

Antonio Negri considera que o “poder constituído” procura tolher o “poder constituinte”, limitando-o no tempo e no espaço, enquanto o dilui através das “representações” dos poderes do Estado.

Em uma definição mais popular, Evo Morales diz que se trata de uma nova maneira de governar através do povo.

Defendem, na prática, a “democracia direta”, o fim das intermediações próprias dos sistemas democráticos.

A mania de personalizar o poder, transformando-se em um salvador da pátria que deve permanecer no governo quanto mais tempo possível, para o bem de seu país, não tem ideologias na região.

Também o presidente conservador da Colômbia, Álvaro Uribe, está empenhado em mudar a Constituição através de um plebiscito para poder se candidatar mais uma vez à Presidência.

No caso de Zelaya, no entanto, a gravidade da tentativa foi maior, porque a Constituição hondurenha tem como cláusula pétrea, que não pode ser modificada, a proibição da reeleição. Diz seu artigo 239 que “nenhum cidadão que já tenha ocupado o cargo de chefe do Executivo poderá ser presidente ou vicepresidente”.

O governo Zelaya anunciou que faria uma consulta popular para saber se a maioria queria que, na eleição de novembro, houvesse uma “quarta urna” para convocar uma Assembleia Constituinte.

Aparentemente, não haveria conflito de interesses, pois, se aprovada na eleição, a Constituinte seria convocada sob o comando do novo presidente eleito na mesma ocasião.

Mas, na publicação do decreto, o governo o intitulou como “Consulta de Opinião Pública Convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte”, o que poderia dar margem a que o resultado da consulta, caso favorável, fosse considerado como uma aprovação à convocação imediata da Constituinte.

O Congresso e a Corte Suprema consideraram ilegal a convocação, e Zelaya foi deposto de maneira violenta pelo Exército e enviado à força para o exterior, o que lhe dá o pretexto de se considerar vítima de um golpe de Estado.

O governo brasileiro deveria considerar as especificidades da situação e trabalhar como mediador da crise, e não alimentá-la com uma ação irresponsável, que já está provocando mortes.

No artigo acima, Merval Pereira alude aos governantes de Honduras, Bolívia, Equador, Colômbia, todos “seguindo os passos da revolução bolivariana de Chavez”, perseguindo alterações nas Constituições de seus países, para se perpetuarem no Poder.

É a forma recente, próxima, da velha e típica tentação totalitária, um homem procurando enfeixar nas mãos um Poder absoluto, incontrastável. Procurando aprofundar seu poder pessoal, em detrimento das liberdades e garantias de seus semelhantes.

“O Estado sou eu”, dizia Luís XIV. Ou Julio Cesar, que dizia: “Prefiro ser o primeiro na última aldeia romana, a ser o segundo em Roma”.

É o orgulho, a tentação de ser o maior, o melhor, o primeiro, o líder, o führer. Hitler, Stalin, Lenin, Fidel, Pinochet, Mussolini, Napoleão, Saddam Hussein... tantos países diversos, diversas circunstâncias históricas, mas a mesma loucura recorrente.

Não temos muitos Napoleões de hospício? Mas volta e meia um desses escapa, e inferniza a vida de seus povos... crêem que possuem algo de muito especial debaixo da pele, só eles é que sabem o que é bom para sua nação, ou para os mais pobres, para os explorados...

Justificam assim seu desejo de exercer um poder absoluto, e de se manterem até a morte no poder. Só que, como notado, o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.

Pobre da nação que precisa de heróis!, tem sido dito. Esses tais Salvadores da Pátria. Esses tais que se sentem, pensam que são o cara, e o cara do cara. Pensam que são providenciais, que foram imbuídos por Deus ou pela História de uma missão especial. Pensam que têm algum conhecimento esotérico, alguma chave da História, porque leram Marx, ou porque têm fé no materialismo dialético, ou porque pensam que eles e só eles desejam o bem de sua nação, ou o bem dos mais pobres, e sabem como alcançá-lo...

E com isso justificam o ódio e a perseguição aos críticos e opositores. Estar contra uma dessas figuras, um desses auto-imaginados e auto-proclamados heróis e salvadores, é estar contra o país e o povo!, é o que está subentendido no seu pensamento.

No seu delírio megalomaníaco, na sua possessão pelo demônio Leviatã, esquecem que são humanos e falíveis, esquecem até que são mortais! O que conseguem, ao enfraquecer os mecanismos de controle, as instituições democráticas, o que conseguem ao ameaçar opositores, calar a liberdade de pensamento, acostumar a nação a uma menor liberdade, a uma menor responsabilidade sobre o próprio destino, é deixar um país mais vulnerável a qualquer imbecil ou calhorda que calhe de ocupar o poder.

Dez anos, vinte anos, cinquenta anos se passam... e quem garante que o melhor entre os melhores, o príncipe filósofo, é que ocupará o poder?

Muito mais comum, nestes Estados em que tudo acontece nas sombras, em que não se tem liberdade de mostrar, e contestar, e reclamar, em que a corrupção viceja, é que os mais sem escrúpulos, os mais dispostos a se valer de quaisquer meios, se valer de subornos, ameaças, e violências, alcançam o poder. E uma vez alcançado o poder, com todos os recursos do Estado na mão, quanto mais de subornos, e ameaças, e violências, não será utilizado, por este mais sem escrúpulos, neste Estado sem instituições, leis ou cultura que limitem o exercício do poder?

Este é o círculo vicioso, infernal, dos Estados totalitários. Vejam o exemplo de Stalin. Numa Rússia já inteiramente submetida ao poder do partido bolchevique, uma Rússia sem lei, em que o governante autorizava arbitrariamente qualquer roubo, prisão, assassinato, Stalin ocupou um posto chave no partido, de secretário-geral, desde 1922. Com a morte de Lenin, em 1924, Stalin utilizou o poder acumulado no seu cargo para galgar ao poder, onde em breve faria suas “depurações” em larga escala, suas “deportações”, seus julgamentos de fachada, seus “Grandes Expurgos”, etc. etc. Chegou ao ponto de mandar um agente de sua polícia secreta ao México, em 1940, para matar com um golpe de picareta na cabeça seu adversário político, Leon Trotsky, desde 1929 exilado da União Soviética.

Quão diferente é a figura histórica de um George Washington! O primeiro presidente dos Estados Unidos, herói da Independência, cumprindo seu segundo mandato servindo à nação, recebeu o conselho de alguns tentadores, para que aplicasse um golpe contra seu país, e se convertesse num Rei, perpétuo... Numa época em que só havia Reis, por toda parte, Washington não se deixou iludir: deu adeus à vida pública e retirou-se para sua fazenda, foi cuidar de suas cerejeiras, deixando um exemplo que sempre seria respeitado por sua jovem nação, que tão rápido se desenvolveria, sob este princípio de liberdade!

Apenas Roosevelt, numa situação de crise econômica, e segunda guerra mundial, permaneceu por quatro mandatos. Mas sem impor mudanças à Constituição. Aliás, a alteração que aconteceu, após a morte de Roosevelt, durante seu quarto mandato, foi ter sido proibida, na Constituição, a reeleição presidencial após um segundo mandato. Institucionalizou-se, por fim, o exemplo de Washington.

Em comparação, o legado dos Reizinhos e Reizões, todo poderosos, tem sido bem outro. Guerras, muitas guerras, perseguição política, masmorras, torturas, fome, miséria, fanatismo, injustiça, corrupção...

E tantos parecem sempre dispostos a repetir a História! Sempre encontram motivo para sucumbir à tentação. É para conter a crise, é para nos proteger, até de nós mesmos. Pregam a infantilização de todo um povo. Não só pregam, impõem-na, quando têm o Poder. Ou quando o Poder os tem.

Continua num próximo artigo.

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