
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
- Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Álvaro de Campos
No Segundo Caderno de hoje, 07.04.2011, o músico Marcelo Camelo ataca aquilo que chama de “fundamentalismo materialista”, “um pensamento que sustentaria a reação (“De uma classe média dateniana, com um caráter denuncista escroto”) à autorização dada pelo Ministério da Cultura para que o blog de poesia de Maria Bethânia captasse R$ 1,3 milhão”.
“As pessoas entendem o valor de uma barra de ouro, mas não entendem o valor de Bethânia declamando poesia” - afirma.
Oooooohhhhh, Camelo, a que vem tanta arrogância? Será porque você é um músico, um ser sensível, especial? Você é um poeta, que entende o valor de Bethânia declamando poesia, diferente dessas pessoas que não entendem, que são fundamentalistas materialistas?
Você não faz parte desta classe média que assiste televisão, e pior, assiste programas de baixo nível, como aquele apresentado pelo jornalista José Luiz Datena. Nunca! Você é um artista, de senso estético apurado, assim como Bethânia.
Por que é que seres tão especiais teriam de responder às críticas daqueles que questionam o destino dos dinheiros públicos? Sr. “Contribuinte”, pague e cale a boca! Pessoas de classe média, sujeitos da esquina, por que vão questionar, denunciar, criticar, o destino do dinheiro público que cai no bolso de uma das pessoas incomuns?
Ah, maldita a sociedade escravocrata, maldita a cultura escravocrata, ou de tradições escravocratas! Maldita a sociedade dividida, a sociedade partida, a sociedade de seres que se consideram muito especiais, que pensam que cagam ouro, que pensam que têm o sangue azul, que ficam ofendidos quando os sujeitinhos das esquinas lhes questionam os privilégios!
Ah, mas no discurso, na máscara, são todos democratas, muy democratas, defensores da democracia... não é o que fala a nossa Constituição, a República Federativa do Brasil, e todo poder emana do povo, e todos são iguais perante a lei? Muito lindo, mas eu quero ver é na prática!
Ou então, façamos o teste: vamos ver se os burocratas, os técnicos, os agentes, os DAS, os diretores, o Ministro, toda a multidão do Ministério da Cultura aprova o meu projetinho de ler poesia na internet. Olha só, vou fazer uma bela promoção: em vez de pagar R$ 50 mil por mês pra Bethânia ler uma poesia por dia, paguem R$ 30 mil por mês para mim, para declamar uma poesia por dia, por um ano. Pagariam R$ 600 mil à Bethânia, ao final de um ano? Paguem apenas R$ 360 mil para mim, olha que bom negócio!
Mas sejamos mais técnicos para não dar ensejo a críticas: não me pagarão R$ 360 mil, apenas aceitarão que deixe de entrar R$ 360 mil no Tesouro Público, para me pagar para oferecer cultura ao nosso coitadinho de povo inculto.
Bem, Bethânia ficaria com R$ 600 mil, ainda sobrariam R$ 700 mil da renúncia fiscal do Estado. Foi autorizada a captação de R$ 1,3 milhão, lembra? Pois os R$ 700 mil pagam o custo de ligar uma câmera para registrar Bethânia, mais uma lâmpada, iluminação, e a trabalheira de botar o vídeo na internet... ufa!
Pois no MEU projeto, também vou dar um abatimento no preço: em vez de R$ 700 mil pelo trabalho de filmagem/informática, deixo por quinhentinhos... total: R$ 860 mil, uma economia de R$ 440 mil em relação ao projeto de Bethânia!
Se eu vou encontrar empresários querendo financiar estes R$ 860 mil? Moleza! Afinal, os ilustres empresários, ao invés de entregar R$ 360 mil de tributos pro Governo, pode entregar pra mim, que sou seu amigo... e ele pode ter um irmão ou um sobrinho que é cineasta, isto é, que tem uma câmera, e que pode embolsar os R$ 500 mil pra dirigir esta obra de arte...
Não é uma beleza? Seria, se o Minc me autorizasse levantar a grana... mas eu não sou Bethânia, um ser iluminado, uma artista, uma pessoa incomum... mas não são todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza? Ah, mas alguns animais são mais iguais do que os outros, como queria a porcada da Revolução dos Bichos, de George Orwell...
Ah, maldita a sociedade escravocrata, maldita a cultura escravocrata, ou de tradições escravocratas! Maldita a sociedade dividida, a sociedade partida, a sociedade de seres que se consideram muito especiais, que pensam que cagam ouro, que pensam que têm o sangue azul, que ficam ofendidos quando os sujeitinhos das esquinas lhes questionam os privilégios!
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