
É difícil falar sobre a tragédia. Só é fácil para aqueles mercadores da dor, ávidos em estampar a face da dor, do desconsolo, da angústia, para um público também ávido por consumir tais estampas.
A tragédia se abateu sobre os brasileiros, sobre a Cidade Maravilhosa, sobre um de seus bairros, o Realengo.
O que se viu não pode ser descrito, não pode ser explicado. A dor, o horror.
Ter raiva de quem fez isso, do autor dos disparos? Parece tão inútil quanto culpar Deus, ou o Destino. Li sua carta, um pensamento incoerente, o sofrimento... alguém que tantos anos viveu sua vida de doente mental, de “diferente”, de excluído.
Um mundo também muito duro, de competição feroz, de pouco tempo para os problemas alheios, pouco tempo para a solidariedade.
Quanto não sofreu esta alma atormentada, desde as crianças na escola, que cada vez mais se utilizam da agressão e da impunidade para dar vazão ao seus sentimentos de aversão e repulsa por aqueles que identificam como “diferente”, até os pais destas crianças, relapsos para lhes ensinar o respeito pelo próximo, ensinando-lhes, ao contrário, o desrespeito mais cruel e acintoso.
Sim, não se iluda, ilustre e honrada sociedade, você não está alheia a todo o problema, isenta de toda culpa. Não foi o seu filho assassinado ou assassinando, mas poderia ter sido.
Não tome estas palavras duras como um desejo de mal, antes como um desejo de bem.
As tragédias não se prevêem nem se explicam, mas isto não importa. O que importa é que podem ser evitadas.
Mas apenas se construímos um ambiente de respeito mútuo para vivermos. Num ambiente de corrupção, de decadência, de imoralidade, de inconsciência, as tragédias se repetirão.
É a escola, que tinha profissionais treinados, tinha médicos, inspetores, assistentes sociais, psicólogos, orientadores, e os vai perdendo para a lógica pequena dos que tomam decisões “econômicas”.
Economizam o centavo na folha de pagamento, pra gastar no milhão do “por fora”.
Crianças, e adultos, que poderiam ter um cuidado melhor, uma oportunidade melhor, uma chance, são colocados pra escanteio por esta “lógica do mercado”, corrupta e perversa.
Será tão caro, para uma comunidade organizada, próspera, solidária, uns 200 mil cidadãos, digamos, arcar com um salário de 4 mil, de 5 mil, para ter um profissional nas escolas, dedicados àquelas crianças? Eu digo quanto cada membro desta comunidade precisa gastar por mês para pagar o salário de R$ 5.000,00 deste profissional: R$ 0,025. Se cada membro desta comunidade pagar R$ 1 por mês, será possível pagar 40 profissionais para esta escola, recebendo R$ 5.000,00 cada.
Dá pra montar uma bela escola, com 40 profissionais trabalhando 8 horas diárias, nossa jornada de trabalho padrão. Dá pra ensinar muita coisa, pra um bocado de crianças, e mais do que isso, dá para proporcionar um ambiente de cuidado e de importância, com as crianças sentindo que estão sendo observadas de perto, e protegidas.
Eu não sei quantos profissionais são suficientes para cuidar das crianças de uma comunidade de 200 mil cidadãos. Mas com 2 reais por cabeça são 80, com 3 reais, 120... com 20 reais, 800. Será que está ficando mais próximo? As comunidades mais pobres podem receber algum repasse das comunidades mais ricas. Falo em comunidades de 200 mil cidadãos porque este seria o número aproximado, se o Brasil fosse dividido em distritos eleitorais, na base: população do país dividida pelo número de deputados federais que temos.
Será um bom retorno para os seus 20 reais, cidadão, pagar o salário de 800 profissionais para atenderem suas crianças? Que diferença podem fazer, numa comunidade, 800 profissionais bem treinados, bem preparados, com objetivos claros, estabelecidos pelas leis do país, atuando no ensino das crianças? Bem conhecidos, bem avaliados nas comunidades onde trabalham, segundo a comparação objetiva proporcionada pelas leis gerais, e pelos resultados obtidos pelas outras comunidades? Com os currículos de ensino, com os equipamentos e os materiais didáticos, e outros aspectos do trabalho, definidos e uniformizados pelas leis gerais, discutidas e aprovadas por legisladores escolhidos por estas comunidades, compromissados com estes distritos eleitorais, presentes a estes distritos eleitorais, para prestar contas a eles, para brigar por eles, se houver necessidade, nos termos da lei. E, se não o fizer, é simples: troca-se de representante na próxima eleição.
Organizar um sistema verdadeiramente democrático, cuja base, cujo pilar, é a escola, deveria ser o trabalho de nossos representantes. Um trabalho que evitaria tragédias neste nosso Vale de Lágrimas, embora saibamos, perfeição está reservada para o Paraíso.
Mas nossos governantes se contentam em fazer o teatrinho, discursos comoventes em frente das câmeras, poses de indignação (o governador do Estado chamou o assassino de “animal” - é tão fácil desumanizar o outro...). Convenientes demonstrações de tipo: “Olhem como eu sou legal, uma pessoa linda, sensível”; e “Olhem como todo a culpa é do outro, aquele animal, aquele bode expiatório”.
Depois, anunciarão com estardalhaço alguma falsa solução simplista para todos os problemas: DETECTORES DE METAL EM CADA ESCOLA! CAMPANHAS DE DESARMAMENTO! E aí poderão voltar para suas viagens internacionais com o dinheiro dos trouxas, para suas mansões e banquetes, muito bem protegidos e seguros, eles e seus familiares, por batalhões de soldados de segurança. Pagos com o dinheiro dos trouxas, naturalmente.
A grande mentira é a dos que cobram bem caro da sociedade, mas dizem que ela tem de se contentar com bem pouco. Uma péssima escola, com profissionais mal treinados, desmotivados, alguns sobrecarregados, muitos fingindo que trabalham, todos sem um objetivo claro, sem fiscalização, sem reconhecimento... crianças desatendidas de suas necessidades, tolhidas de suas possibilidades, gerando adultos também desatendidos e tolhidos, que, alguns, explodirão em tragédias, explodirão em raiva, em sofrimento, em dor.
Sim, uma grande mentira, mas é a nossa realidade.
Sim, os grilhões que nos aprisionam são todos mentais, mas terrivelmente reais.
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