
A decadência é caracterizada pela perda do auto-governo por uma população.
Viver sob as leis de outro povo, ou de outra classe, ou de algum partido, foi fatal para o esplendor e a glória, para a própria saúde espiritual, tanto de povos antigos, quanto no presente, em cada lugar do globo.
Os antigos gregos, introdutores do conceito de democracia, de auto-governo, pelo menos na sua forma mais elaborada, ou conceitual, com leis, instituições, práticas, ilustram bem isso.
Os cidadãos atenienses constituíam um grupo igualitário. Todos e cada um podiam se pronunciar nas Assembléias, julgar, constituir corpos legislativos, executivos. Viviam sob suas próprias leis, com proximidade e igualdade, irmanados nas suas guerras e na sua paz.
Não só Atenas, várias das Cidades Estados gregas. Algumas eram autoritárias, mas ainda assim havia uma igualdade de direitos entre os seus cidadãos, como Esparta.
Por outro lado, mesmo na democrática Atenas houve vezes de o poder ser usurpado, por um ou vários tiranos, que fizeram a experiência de direitos diferenciados para alguns, “incomuns”, perseguição política a opositores, e toda a escalada de males que advêm da concentração de poderes. Da diferenciação entre cidadãos, entre indivíduos.
Mas pela maior parte do tempo os cidadãos das cidades Estados gregas conseguiram viver sob suas próprias leis, e com igualdade perante as leis. E este foi um período de esplendor e desenvolvimento humano. Um dos grandes, na História do homem.
Os gregos prosperaram, cresceram em número, mesmo sua terra dando bem pouco. Com a população crescendo continuamente, saíram em busca de espaço, fundaram colônias, da Ásia Menor à Itália, preservando sua cultura, a chamada Magna Grécia. Na cultura, na mitologia, nas artes, na matemática, na ciência, na filosofia, deram mostras de uma capacidade extraordinária.
Para manterem seu estilo de vida, sua independência, sua dignidade, ou seja, o direito de viverem sob suas próprias leis, recusaram orgulhosamente a “oferta” dos emissários persas, que lhes propunham terem suas vidas poupadas, em troca de reconhecerem a soberania do rei persa.
Em resposta, aqueles gregos atiraram os emissários persas em um poço, dizendo que ali encontrariam a terra e a água que lhes eram requeridas, em sinal de submissão.
Com as guerras médicas que se seguiram, os gregos unidos mostraram que um povo livre pode constituir um exército bem treinado e vitorioso. Lutando unidos e sincronizados na formação de falanges, tanques de guerra da época. Ou construindo uma esquadra, às pressas, para fazer frente à esquadra persa. Venceram uma guerra contra o primeiro grande império da humanidade, numa desproporção de forças absurda. E mantiveram sua liberdade.
O que se seguiu foi o apogeu da cultura clássica grega. Atenas, a cidade que se destacara no comando da guerra, que sofrera a ocupação dos persas, nas seguintes gerações teria sua “Era de Ouro”, com Platão, Sócrates, Péricles, Heródoto, Fídias, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes... atraía os grandes sábios da Grécia, Protágoras, Hípias, tantos outros.
Como numa tragédia grega, porém, a hybris (orgulho), em seguida trouxe a queda. A estrela que muito intensamente brilhava se apagaria bem rápido.
Atenas mantivera sua esquadra, dominante sobre as esquadras de outras cidades gregas, após a guerra pérsica, na chamada Liga de Delos. Deveria ser para a segurança dos gregos, mas depois de algum tempo, algumas das cidades, considerando que o custo de permanecer na Liga não compensava a incerta ameaça de um novo ataque persa, manifestaram a intenção de deixar a Liga.
Atenas, porém, que dominava a Liga e cobrava os tributos das outras “sócias” para manutenção da esquadra , reagiu com a violência de uma nova tirana àquelas pretensões de afastamento.
O dinheiro para a manutenção da esquadra, o ouro que pagava soldados, remadores, construtores, afluía para Atenas e gerava a prosperidade da cidade. Quando ameaçou faltar, a população, viciada nos prazeres que o ouro pode comprar, moveu-se na direção da guerra, fiados em seu grande poderio, para submeter a vontade das cidades gregas livres.
No fabuloso “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides, existe um episódio brutal e representativo, durante a guerra, em que os soldados de Atenas dizem muito claramente aos habitantes de uma pequena cidade Estado insurreta, recém-dominada, que a escolha que eles têm é de obedecer às ordens de Atenas ou morrer. E aqueles habitantes, também muito claramente, dizem que sua escolha é morrer, e realmente morrem por isso.
Esparta, e outras cidades coligadas, que sentiram a ameaça de uma Atenas que tencionava se tornar tirana sobre as outras cidades gregas, lançaram-se a uma luta de 26 anos (431 – 404 a.C.), repleta de episódios pavorosos, principalmente para Atenas, da peste na cidade à louca expedição fracassada na Sicília, e que culminaria com sua derrota frente a Esparta, para nunca mais recuperar seu antigo brilho.
A própria geração de Sócrates, Platão, Péricles, já experimentaria a ruinosa guerra do Peloponeso, que esgotaria, não só Atenas, mas toda a Grécia, que no meio da infinita guerra fratricida veria sua liberdade política ser tomada pelos macedônios Filipe e Alexandre. Depois dos macedônios, os romanos, e a Grécia livre era uma página virada da História.
Foi quando se instaurou a decadência. Ainda haveria os clarões de um Aristóteles, de um Eurípedes, e outros, mas qual é a graça da vida, para um povo antes livre, orgulhosamente livre, submetido à escravidão, sem ver meios de escapar?
Ainda manteriam algumas de suas tradições, algumas instituições, mas sabendo que estavam sob um domínio alienígena. A última palavra passava a ser dos macedônios, ou dos romanos. A sua liberdade para criar suas leis, e viver sob suas leis, era uma liberdade limitada, consentida. Nestas condições, será que ainda faz sentido falar em “liberdade”? Creio que não.
E junto com a liberdade foi-se o brilho, o esplendor, o interesse vital. O pensamento, e claro, a filosofia, passou a ser voltado para o próprio umbigo, hedonista, relativista, negativista. De fato, de que adiantava viver como antigamente, viver como homem público, participando da vida da cidade, de suas votações, de suas decisões?
Mais vale viver num Jardim de Epicuro, mais vale buscar uma resposta individual na ataraxia. Mais vale dizer que nada vale a pena, ou que tudo é relativo. Mais vale votar em Tiririca.
Afinal de contas, é verdade que participar da política sem a liberdade é participar de um teatrinho, de um faz de conta.
Os gregos antigos nunca conseguiram recuperar sua liberdade. Mas é claro que na História do homem representaram um glorioso papel. A liberdade, aliás, nunca foi tão abundante assim, na História do homem.
Mas os gregos foram um exemplo marcante nessa história da conquista da liberdade pelo homem, e influenciaram seus próprios conquistadores, macedônios e romanos, e toda a cultura ocidental, e hoje todo o mundo.
Não falamos em democracia, a torto e a direito? Não falamos em liberdade? Não falamos em igualdade?
Olhem para essa história grega. Olhem para essa cultura.
Não que se esteja idealizando a liberdade, tal como foi experimentada historicamente pelos gregos. Já se disse, a democracia ateniense se corrompeu, agiu tão cruel e violentamente quanto qualquer tirano soberbo. A democracia ateniense também calou seus críticos, expulsou o filósofo Protágoras, queimou seus livros, condenou à morte Sócrates, seu modelo de homem livre.
Também: o direito de voto era restrito aos cidadãos do sexo masculino, livres, porque havia muitos escravos na população, mas que não eram contados como homens livres.
Tudo isto é verdade, mas não existe perfeição neste mundo. Na comparação com outros povos, mesmo de hoje, os gregos antigos davam um baile de liberdade. No mundo antigo, então, aquele era um exemplo de experiência humana que cintilava. Um pequeno grupo humano, mas marcando a história com seus mercadores, com sua cultura, com suas histórias, com suas leis, com suas instituições políticas, com seus guerreiros...
E se é verdade que a liberdade e a igualdade eram restritas a um pequeno grupo, também é verdade que, dentro daquele grupo, elas eram reais, efetivas.
A liberdade e a igualdade continuariam a cintilar dentro de outros povos, depois de perdidas pelos gregos.
Foi assim, por exemplo, com os macedônios, na sua igualdade de soldados. Alexandre, o general, que combatia na linha de frente, com seus irmãos guerreiros. Roma, que expulsou os seus reis etruscos e se fundou como República de patriarcas agricultores e guerreiros, vitoriosa em mil guerras.
E os regimes igualitários de tribos bárbaras, que se chocariam com o já decadente império romano, e o fariam ruir.
E a longa batalha dos ingleses para limitar o poder dos seus reis, à medida que se desenvolvia o poder de seus nobres, e depois de seus mercadores, de seus cidadãos (no sentido de os que vivem nas cidades).
E os grupos igualitários de puritanos que fundavam colônias no Novo Mundo, e em 200, 300 anos, conquistavam sua liberdade da Metrópole, e se desenvolviam aceleradamente, para espanto, admiração, inveja, de todo o mundo.
De novo: sempre com seus problemas, sempre com suas imperfeições. Mas os ideais de liberdade e igualdade podem ser identificados, nestes e em outros exemplos, atuando na História, inspirando alguns povos, proporcionando períodos de glória para alguns povos, embora sempre sob ameaça de sofrer retrocessos e até serem perdidos, no desenrolar da História.
Será que os sintomas da decadência, que identificamos em maior ou menor grau em toda e qualquer sociedade, com os crimes bárbaros, com os costumes frouxos, com a perda, progressiva ou súbita, da liberdade, com a corrupção aumentando, e a miséria, e os luxos e os mimos, e as guerras, e a falta de disposição para o trabalho, e a dissolução das famílias, e todos os vícios, todo o conformismo, todo o individualismo, será que a decadência, e todos os seus sintomas, serão reversíveis?
Também neste caso podemos recorrer às lições da História: podemos lembrar dos nazistas, ou do imperador japonês “divinizado” da época da segunda guerra mundial. Não se concebe maior atentado à liberdade do que nestes exemplos.
Pois não foi preciso mais do que uma ou duas gerações depois da guerra para que o Japão e a Alemanha (Ocidental) se reerguessem com Parlamentos e liberdade para o povo, no processo atingindo também os primeiros postos da Economia mundial.
Está certo, foi preciso uma derrota sofrida na guerra, mas não deixa de ser gratificante ver a rapidez com que a liberdade frutificou em progresso material e humano, uma vez plantadas as sementes, dentro dos próprios povos que tão recentemente a haviam renegado por completo.
O que demonstra que não existe um defeito congênito a alemães ou japoneses, ou a qualquer outro povo, que os impeça de apreciar e aproveitar a liberdade. Tratava-se de circunstâncias históricas, em que a liberdade perdeu prestígio por todo o mundo, traumatizado por crises econômicas, guerras “totais”, sanguinolentas, competição sem limites de todos contra todos.
Alemanha e Japão terão experimentado, talvez em maior grau, esta insegurança traduzida como ameaça à própria existência. Identificaram talvez os sintomas da decadência, na carestia, na falta de alimentos, e voltaram-se contra a liberdade, identificada como fraqueza fatal, num mundo de sobrevivência do mais forte.
Negaram, radicalmente, a liberdade ao indivíduo. O homem tinha de ser um trabalhador e um guerreiro para o Estado, as mulheres boas reprodutoras, e cuidariam da família. Tudo para fazer a nação “forte”, e em troca o Estado daria segurança para os indivíduos.
Chegou-se ao extremo da falta de compaixão, de não se admitir a vida aos mal formados, aos pobres loucos, aos incapazes. “Degenerados”, berrava a propaganda nazista, “deturpadores da raça”, e os executava em massa, impiedosamente. Vide o documentário “Arquitetura da Destruição” e “Homo Sapiens 1900”, de Peter Cohen.
Na verdade, seguindo meu argumento, a tentativa desesperada de fugir à decadência pela cassação da liberdade redundava na suprema decadência de um Estado violento, covarde, insano, que declarava guerra ao indivíduo e ao mundo, buscando a própria destruição, como um cão raivoso, que precisa ser abatido, buscando o seu próprio fim.
Ao sentirem-se decadentes, sentiram medo, ao sentirem medo, pensaram em abrir mão da liberdade para aumentar a segurança.
Mas que segurança tiveram, quando seus líderes, cegos e perdidos como eles próprios, os conduziram para o abismo da guerra?
Caso lutassem pela liberdade, e a conquistassem, ou a mantivessem, ou a aprofundassem, a liberdade real, de participar da formação das leis a que se submeterão, afastariam a decadência, e o sentimento de ameaça.
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