
O único sentido da vida para um homem é descobrir algo que ele possa fazer bem, e viver deste trabalho com dignidade, com orgulho de usar suas capacidades para desempenhar uma função.
O único Estado que se pode dizer próspero, ou corretamente governado, é o Estado que proporciona esta realização para seus súditos, o povo.
O Estado que se afasta disso cai inevitavelmente no seu oposto: um Estado em que o homem é o lobo do homem, o escravo do homem.
Um fazendeiro feliz: ele vê sua criação prosperar, suas terras, suas posses, os campos cheios, bem cultivados. As criações procriando, saudáveis.
Um fazendeiro infeliz: aquele que trabalha por nada, ou por muito pouco. Que vive quase que só com sua roupa do corpo. Mas que levanta todo dia às cinco da manhã, e vai trabalhar ininterruptamente até as outras cinco.
Que vai produzir, mas não terá boas estradas ou bom acesso ao mercado, e será explorado pelo atravessador. Será feito um tanto escravo.
Este é um de tantos exemplos. Podemos pensar nos custos dos tributos desproporcionados, complicados, injustos. Ou nos altíssimos juros, na inflação, nas dificuldades com a mão-de-obra, e com as múltiplas Justiças, ou a burocracia, ou a falência miserável dos serviços públicos, e tantas outras coisas que formam o “custo-Brasil”.
Vivermos num Estado que desonra tão cinicamente, tão corruptamente, tão estupidamente, a dignidade do trabalho de seu povo, é tão vergonhoso que não há palavras...
Isto é o que vivemos, é a isto que nós, queiramos ou não, em tão vários níveis, nos amoldamos e sofremos.
Chegamos a um ponto em que o mais profundo cinismo, com toda a carga pejorativa que adquiriu esta palavra, impera, é a regra.
Vermos os governantes corruptos, notoriamente corruptos, virem justificar toda esta corrupção. Fingirem que não existe corrupção, como se pastássemos, como se não pudéssemos dar crédito para o que acontece aos nossos olhos.
Desrespeitam todas as leis, sim. Fazem coisas censuráveis, coisas condenáveis, para ganhar muito dinheiro.
Um golpe em cada canto. Este é o lema secreto do país.
Mas justificam, bom Deus, justificam!, dizendo que é assim mesmo. E que todos fazem.
Estes não têm como ideal, de forma alguma, passar sua vida numa profissão, que gostasse de desempenhar, que soubesse desempenhar, que desempenhasse com dignidade.
Claro que não. Ideal destes é se entupir de dinheiro, de viver de férias, de passear de jatinho, de se hospedar em 10 estrelas.
Para desfrutar deste ideal, não se pejam de fazer todo o Estado servi-los.
Abundam os empreguinhos públicos, com muita grana e direitos, e pouco trabalho e deveres, e as diretorias de Bancos, e as diretorias que “furam poço pra jorrar petróleo”, e os negócios de milhões com as empreiteiras, “doadoras” de campanhas políticas, para construir estradas, para reformar estradas...
E, estes com este ideal de pirata, de ganhar dinheiro rápido, não por um trabalho feito, mas por uma sujeira cometida, estes são os que governam, e poluem toda a sociedade com seu ideal torto.
Toda a sociedade passa a pensar em termos: “EU TAMBÉM TENHO DE ME DAR BEM! EU PRECISO ME DAR BEM!” E topa fazer as mesmas sujeiradas. Dá o seu assentimento.
E assim perverteu-se todo um país... morto de apatia moral.
É o país proibido de viver o ideal descrito no primeiro parágrafo: viver do seu próprio trabalho, descobrir sua função, seu prazer no trabalho.
Pois este é o sistema, que nos amolda. Como é que um jovem vai viver seu ideal, digamos, de ser um bom policial, se há tanta corrupção e mal-feitos, na Polícia?
É claro, não se pode generalizar, e há muitos policiais dignos.
Mas dizer que nossa organização policial é muito bem feita, sem injustiças e problemas graves, é negar a realidade que se vê com o próprio olho. É mentir, é enganar.
Todos sabem que policiais não podem ser máquinas de matar. E que investigações devem ser feitas, para a segurança pública, presos ladrões e outros elementos nocivos para a sociedade.
Mas é isto que se vê por aqui? Em grande medida, é isto que se vê?
Porque o sistema em que vivemos em grande medida dificulta, ou mesmo impede, que um trabalhador tenha satisfação e orgulho do seu trabalho. Por fazer um trabalho bem feito. No caso, um policial.
Ao ponto de, em determinados lugares, aquele que deseja fazer uma investigação séria seja visto e apontado como um louco. Um tonto, incapaz de enxergar a realidade.
A realidade que mostra um monte de gente graúda que não vai presa, não importa o tamanho do malfeito...
E, com estes exemplos, o policial cônscio e digno de seus deveres vai aparecer como maluco. Como estúpido, ou hipócrita.
Um sistema em que a própria corporação vai ignorar e, “passar a mão na cabeça”, dos problemas. Ser conivente com eles. E vai defender privilégios e injustiças. Como é que num sistema assim se vai ter o “bom policial”?
Apenas em alguns casos e circunstâncias. Mas, em grande medida, este sistema não vai dar espaço a este “bom policial”, que se orgulha do trabalho que faz. Vai dar espaço, isto sim ao policial com aquele mau ideal: o policial corrupto, o que quer se dar bem, “se dar bem” significando “trabalhar” não para prender criminosos, mas em proveito próprio, para fazer o “pé de meia”, trocar de carro, trocar de casa, ganhando grana de forma inconfessável.
Como o mau político, como o mau cidadão.
Ao invés de um trabalho consciente, honesto, a vergonha moral da corrupção.
Ao invés de uma vida modesta, a vergonha escandalosa dos luxos, mansões e castelos, jatinhos, serviçais variados, num país em que a feia miséria engole seus filhos.
Dois ideais opostos incomunicáveis.
Um não suporta o outro, um não deixa de matar o outro.
Se o governante aceita a corrupção, pratica a corrupção, o sistema vai adernar para o ideal que odeia o trabalho, e explora o trabalho.
E, se o sistema endossa o ideal corrupto, ele vai reproduzir o Estado infeliz, o Estado que prejudica a realização do ideal humano de trabalho digno.
Não importa o quanto os governantes corruptos mintam, para si mesmos e para os outros, que as migalhas que atiram para o povo fazem dele um bom governante.
Enquanto passeia de jatinho, feliz e poderoso por sobre as gentes, jatinho que sabe que foi conseguido por meios inconfessáveis.
Ele se mente dizendo que tudo o que fez foi para o bem do povo. Que ele chegou a este píncaros de poder para realizar a vontade de Deus e do povo. E que ele se valeu de toda injustiça, foi porque ele precisava fazer isso para chegar até ali, para o bem do povo.
Este mente, e mente tanto, que já vive em pleno delírio, como um louco.
Para este, não há sequer argumento. Do que serve argumentar com um louco?
Falo para as pessoas sãs, e para estas eu digo: não devem aceitar que os governantes nos ditem sua loucura. Ela serve para eles, se é que serve, mas para eles ganharem outro milhão, ou outro bilhão.
Para nós, os que pagamos, e nada recebemos, ou recebemos merda, para nós, os explorados, a lógica insana não nos serve.
Como dito, desde o princípio, para nós serve o Estado bem estruturado, em que o bom ideal prevaleça.
Onde um policial pode ser um policial, um professor um professor, um juiz um juiz, um fazendeiro um fazendeiro, um operário um operário.
Sem a sobrecarga desumana dos tributos estúpidos, das burocracias infernais, das explorações variadas.
Do custo-país.
É possível que consideres tudo isso uma simples história de velhas, que só
merece o teu desprezo. Não fora nada extraordinário que nós também a desprezássemos, se
em nossas investigações encontrás semos algo melhor e mais verdadeiro. Mas, como viste,
vós três, os mais sábios Helenos do nosso tempo, tu, Polo e Górgias, não fostes capazes de
demonstrar que devemos viver uma vida diferente desta, que se nos revelou vantajosa até
mesmo no outro mundo. Entre tantos argumentos desenvolvidos, to dos foram refutados,
tendo sido este o único que se manteve firme, a saber, que devemos com mais empenho
precaver-nos de cometer injustiça do que de ser vítima de injustiça, e que cada um de nós
deve esforçar-se, acima de tudo, não para parecer que é bom, mas para sê-lo realmente, tanto
na vida particular como na pública. Se alguém se tornar mau sob qualquer aspecto, deverá ser
castigado, sendo esse o segundo bem depois do de ser justo, que é tornar se justo por meio do
castigo e da expiação da culpa; que toda adulação deve ser evitada, tanto com relação a si
próprio como a estranhos, quer sejam poucos, quer muitos, e que tanto a faculdade de bem
falar como os demais recursos desse gênero só devem ser empregados a serviço da justiça.
Aceita, portanto, meu conselho, e acompanha-me para onde, uma vez chegado, serás feliz,
assim na vida como na morte, conforme nosso argumento o certifica. Deixa que te desprezem
como insensato, que te insulte quem quiser insultar, sim, por Zeus, recebe sem perturbar-te
até mesmo aquele tapa ignominioso; não virás a sofrer mal nenhum, se fores um homem
verdadeiramente bom e se praticares a virtude. E depois de a termos praticado em comum, se
julgarmos conveniente, dedicar-nos -emos à política ou ao que melhor nos parecer, o que
decidiremos oportunamente, quando para isso ficarmos mais aptos do que estamos agora.
Pois é vergonhoso, sendo nós o que mostramos ser neste momento, blasonar como se
valêssemos alguma coisa, quando nem sequer pensamos do mesmo modo sobre qualquer
assunto, principalmente os de mais importância, tão grande é nossa ignorância! Tomemos
como guia a verdade que acaba de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor maneira de
viver a que consiste na prática da justiça e das demais virtudes, na vida como na morte.
Aceitemos essa norma de vida e exortemos os outros a fazer o mesmo, não aquela em que
confias e que me aconselhaste a seguir. Porque essa, Cálicles, é carecente de valor.
- Sócrates, no diálogo “Górgias”, de Platão
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