quarta-feira, 15 de junho de 2011

Tempos Modernos


Segundo Eric Voegelin o ser humano cria símbolos para exprimir a sua concepção de universo, e estes símbolos vão espelhar e determinar a ordem que este ser humano viverá, em coletividade, formando a política, e em sua própria existência individual.


Ele dá exemplos com os ordenamentos políticos da História. Os egípcios, os judeus, os mesopotâmicos, os chineses.


Pensemos em outro ordenamento: o da nobreza absolutista da Europa. O sistema, heliocêntrico, das grandes descobertas científicas de Galileu e Newton. O Universo, um grande mecanismo ajustado por Deus, ninguém menos. A Razão, segundo se cria, podendo desvendar os segredos desta Grande Mente, prever a posição de estrelas, explicar a razão com que a lua atrai a terra, e vice-versa.


Na Religião, justificava-se o Rei como sendo o Sol de seus súditos. O Rei-Sol da França, Luís XIV. Pela Vontade Divina, a mesma que determinava o curso das estrelas.


Justificou-se o Absolutismo em prol deste ideal. Pensaram que tudo ficaria imóvel em seus lugares, como um sistema solar: a nobreza, o clero, o terceiro estado, cada qual com suas órbitas e seus privilégios. Sendo que o privilégio do terceiro estado era calar a boca e pagar impostos.


Claro que a História ensinou que tudo o que é sólido se desmancha no ar. A mesma Razão que o criara, na sua evolução, o viria a destruir.


O método científico prosseguiu com suas descobertas, e elas acabariam por derrubar a fé dos homens naquela explicação do Universo. O homem partiu o átomo, explodiu milhares num piscar de olhos. A imagem mais chocante do Universo, um imenso cogumelo radioativo crescendo do solo, suprimindo da existência milhares de vidas, em um segundo?


Uma das imagens que achei forte, num documentário sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, anos depois da explosão: a sombra de um homem vaporizado permaneceu na calçada. Não sei sequer a explicação para isso, creio que relacionado ao tremendo clarão. Ficou uma sombra na calçada, preservado o local como lembrança do dia terrível.


Uma sombra no chão. No documentário repetia-se inclusive a postura do homem: estava sentado, a pouca distância do ponto da explosão.


Isto era um dos lados onde a ideologia do tempo havia conduzido o homem. Os americanos, com seu desenvolvimento tecnológico, com suas fortunas de dinheiro.


O outro lado, a assumir a liderança no pós-guerra, igualmente poderoso, igualmente incapaz de prezar a vida humana. Milhões eram mortos pela ideologia do comunismo, governantes que assumiram o poder para declarar guerra contra seu próprio povo e contra outros povos, por quê? Para que o comunismo triunfasse... isto dito assim parece tão louco, tão bizarro. Mas foi uma consequência inevitável do Grande Desprezo pela vida humana, que parece ter acompanhado o homem nos seus tempos modernos.


Um homem competindo com outro homem. Nenhum espaço para a ideologia antiga, da compaixão, do bem viver com seu semelhante. Não, este ideal era a mentira, a hipocrisia, a decadência. “Precisamos reinventar os valores!”, gritava um Nietzsche tresloucado, dando voz a tantos auto-proclamados “super-homens” de que o mundo se via cheio.


Todos e cada um, um exemplo para a humanidade, sem nada precisar fazer para se sentir assim. Sem precisar levar uma vida de correção, uma vida íntegra e honrada até o último fio de cabelo. Não, apenas porque eram modernos, e conheciam a ciência, e os outros povos, e liam bastante, e eram tão inteligentes... já se sentiam autorizados a proclamar “revaloração de todos os valores”, e “mortes de Deus”, e “martelo que destroça deuses”, ou qualquer bobagem do gênero.


Olhavam para A Teoria das Espécies, de Darwin, e já saíam concluindo: a Bíblia estava “errada”, como se a Bíblia fosse uma conta de 2 + 2. Tão fundamentalistas quanto os que defendem “criacionismos” e outras teorias pseudo-científicas.


A Teoria das Espécies foi a culminância deste desenvolvimento da ciência, no seu solapar as idéias da Igreja. Antes disso algumas mentes na Igreja já haviam identificado o perigo das novas idéias, que questionavam sua autoridade. Galileu foi obrigado a abjurar de sua contestação ao geocentrismo, tido como matéria de fé pela Igreja: “A Bíblia diz!”


A ciência previa, a ciência explicava. Já não havia muita necessidade de Deus. Ele ficava de fora deste Universo, como Relojoeiro, criador do mecanismo, mas ausente dele.


Mas, então, se não havia necessidade, podia-se descartar a sua idéia. Por que acreditar? Coisa de bárbaros, de tontos, de mulheres e de crianças. “O temor de Deus é o início da sabedoria”. O que é isso? A frase de um livro, e nada mais.


O mesmo cenário da modernidade, das grandes descobertas científicas, podia gerar dois monstros: por um lado, Leviatã, o Estado Absolutista, o Rei Sol, a imobilidade social sob um Poder sem limites. “Deus queria que o Universo fosse assim”, diria seu slogan. “A Razão mostrou como Deus dispôs o Universo, com o Sol no centro, com os diversos planetas, e satélites, em volta. Cabe ao homem reproduzir esta situação, acatar esta Vontade Divina, com o Rei no centro, com os nobres e o clero, em órbita próxima. E a ralé mais ao longe”.


E por outro lado, Behemoth, a ideologização das massas. “A Ciência “prova” que não há Deus. Mas a Ciência poderá nos salvar. Criaremos o Homem Perfeito, através da ciência da psicanálise. E criaremos o Estado Perfeito, através do socialismo científico. As Ciências Econômicas gerarão a abundância. A sociologia ensinará o que é que as coletividades precisam. Ah, Comte, o positivismo... Marx, Freud, será que não se enxerga um padrão?


Claro, Marx, Freud, Comte, eram homens inteligentes, instruídos. Mas não deixavam de ser representantes de um tipo, o tipo moderno, confiante na ciência, materialista, racionalista, desconfiado e crítico das autoridades passadas, das tradições. “Vamos submetê-las à nossa Razão, nossa poderosa Razão. Verão que não sobra nada delas”. “Penso, logo existo”.


Engraçada esta euforia que tomou conta do homem. Ele não precisava entender como a lâmpada acende, como o avião voa, ou o automóvel anda, para participar da euforia com a ciência. Ele via estas coisas acontecerem, e se maravilhava, e punha todas as suas esperanças neste Poder que fazia estas coisas incríveis. E este Poder era a Razão, era a Ciência.


Eu não preciso mais me preocupar se ficar doente. O médico me cura, faz uma cirurgia, troca o meu rim, dá um jeito. Coisas incríveis, eu vejo acontecer, pelo jornal, pela televisão. Pobres destes ignorantes que confiam em “rezinhas”, em curandeiras. E eu também trago a barriga cheia, finas iguarias, de todas as partes do mundo, vêm encher minha pança. Leio notícias de todo o mundo, utilizo máquinas que deixam espantados meu pai e meu avô. E também vivo mais, conheço mais meus avós e meus bisavós, este é o mundo moderno”.


E não vou desdizer estas palavras, não vou condenar os tempos modernos, como se nada tivesse acontecido de bom. Acho inútil, e pior, hipócrita, quando vejo um tipo desses que anda de avião, fala em celular, usa computador, vai ao hospital fazer cirurgia, e diz que seria melhor se continuássemos com enxada no campo. Ou melhor, enxada não, porque é muito moderno: cavando com as mãos, para plantar a semente! Aí, sim, o homem seria feliz, em contato com o solo!


Não; não vou dizer que a Ciência é um mal, ou que a Razão é um mal, que a História e o homem deviam ter seguido assim e não assado.


Mas nem por isso vou endeusar a Razão, sacrificar à Razão, idolatrar a Razão.


De fato, à época da Revolução Francesa criou-se uma Religião da Razão, com uma jovem fazendo o papel de Deusa Razão, desfilando para adoração de seus fiéis.


A euforia do homem moderno com as maravilhas da Ciência fez com que ele abdicasse do direito de criticar e desconfiar da sua “deusa”. Logo ele, tão crítico e desconfiado das autoridades do passado, das tradições, e de tudo aquilo que não passava pelos seus critérios “científicos”, “racionais”...


Pois é, criticava cegamente um seu aspecto, para também cegamente acatar um seu outro aspecto...


Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... ou, a virtude está no meio.


Estudar as ciências matemáticas é uma boa coisa. Estudar as ciências humanas também. História, Religião, Filosofia, porque abrir mão deste tesouro acumulado ao longo dos séculos? Porque não é “científico”, não atende aos critérios do método científico?


Houve quem quisesse quantificar sentimentos, para desenvolver psicologias “científicas”. Houve quem quisesse fazer crítica literária “matemática”, e coisas do gênero. Tudo para demonstrar o prestígio das “exatas”, e o correspondente desprestígio das “humanas”.


Mesmo hoje, vemos exemplos deste raciocínio estreito. Governos de países desenvolvidos, cortando verbas para os estudos superiores de “humanas”. Todos querendo o dinheiro rápido, desvalorizando o que não promete isso.


Os próprios estudiosos de “humanas” (não “ciências humanas”), refletindo esse desprestígio, como eu disse, tentando tornar seus estudos mais “científicos”, crítica literária “matemática”...


Ou se fechando em si mesmos, como em defesa, produzindo textos herméticos, ilegíveis, masturbatórios... vale tudo, porque tudo é relativo, e nada importa...


Isso tudo por conta da desmesurada euforia com que o homem moderno acolheu e acolhe as maravilhas das ciências.


Repito: estas maravilhas existem, são reais, mas não precisam ser tomadas por deusas que não se questionam e nem se criticam.


Inclusive, quando não se questionam nem se criticam, passam a fanatizar muitos seres, que vão buscar a realização da sua ideologia “científica” neste mundo... uma sociedade “cientificamente” feliz e perfeita, sob o socialismo “científico”... uma sociedade “perfeita”, formada pelo Novo Homem, super-homem, “perfeito”, quem sabe geneticamente alterado, ou lobotomizado, ou psicoanalisado, ou fruto de uma seleção artificial a partir da separação das “raças”, ou quem sabe controlado por drogas, uma pílula de “Soma”, como na distopia criada por Aldous Huxley... e, no esforço de realizar esta “perfeição”, ele nem sente pena de sacrificar alguns milhões de “atrasados”, que não se sentiriam bem mesmo neste Admirável Mundo Novo que eles se esforçam por construir...


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