A política de cotas raciais está aí, ganhando avanços sem parar, apesar de toda a polêmica que gera.
Na verdade, não vemos um debate sério no Congresso, pesando-se prós e contras. Claro. Nosso Congresso não está aí para debater, ponderar, estudar, refletir. Está aí para disputar cargos e benesses, para favorecer seus redutos eleitorais e garantir a permanência no poder. Esta é a realpolitik, estúpido.
As vitórias dos defensores de cotas se dão como muitas outras, na nossa política: grupos de pressão organizados vão impondo sua vontade sobre o sono indiferente da maioria. É uma lei antiga e bem conhecida, embora pareça afrontar o senso comum, quando se considera superficialmente a questão: como é que um grupo pequeno pode prevalecer sobre uma multidão?
É simples. O grupo pequeno concentra seus esforços, se organiza, e tem muito a ganhar. Enfrenta um adversário, a multidão difusa, o “povo”, disperso pelas múltiplas preocupações, com uma perda que, diluída pelo grande número, será menos sentida, proporcionalmente, do que o grande ganho que a vitória representará para os beneficiários do grupo pequeno. O “povo”, na verdade, é uma entidade abstrata, irreal, sem substância. Não pode prevalecer contra a concretude dos interesses que o assaca. É facilmente enganável, confundível. No final, vai dizer que foi por sua vontade que aquele grupinho ganhou imensos privilégios. É bom conhecer o mecanismo, o seu funcionamento.
Por exemplo: um grupinho de servidores briga na Justiça, pressiona os parlamentares, dos quais estão próximos, fazem campanha, escrevem faixas, elaboram palavras de ordem, para ganhar uma “aposentadoria especial”, de mãe pra filho, repleta de vantagens. Para este grupinho, o ganho é enorme, significa vida mansa, pra eles e pros seus filhos. Pro “povo”, é só mais uma canga. Mais um 0,3% no orçamento da União, coisa que não dá nem pra saber, nem pra notar, no meio das montanhas de dinheiro que somem mesmo, debaixo de sua vista. No final, diz-se que foi mais um ganho social dos trabalhadores, uma vitória, de quem? Dele mesmo, do povo.
Um país com um baixíssimo nível de escolaridade, iletrado, com montes de famílias desestruturadas, com montes de crianças nas ruas, é apenas o pano de fundo ideal para que estes interesses particulares tenham seu ganho máximo frente ao bem público.
Outros exemplos, militares/históricos, podem servir também para ilustrar com maior clareza o mecanismo que leva grupos pequenos e organizados a prevalecerem sobre as multidões sem comando. As falanges gregas, disciplinadas, treinadas, resistiram e derrotaram vastos exércitos persas; os bolcheviques, mesmo que proporcionalmente ínfimos, aproveitaram da anarquia da dissolução do regime czarista para assumir o controle totalitário, absoluto, na Rússia. Depois, claro, também disseram que representavam a vontade do povo russo, e que fizeram a “revolução” em seu nome...
Mas evidentemente isto tudo só serve para outros países, para gregos e persas, e russos, mas não para o Brasil, que ganhou favor especial de Deus. Deus não é brasileiro? E podemos seguir dormindo eternamente em berço esplêndido.
Mas falava de cotas raciais, não é mesmo?
Já vivemos a situação esdrúxula de obrigar professores a definir a “raça” de seus alunos. Este aqui vai ser branco, aquele ali amarelo, e o outro vermelho. E aquele ali é preto. Mas e aquele moreninho? Ele é branco, ou é preto?
Meu Deus, parece tão irreal... um pesadelo humorístico, como dizia Nelson Rodrigues. Como as obras de Kafka, que horror.
E isto servindo, para numa mesma escola, numa mesma classe de aula, um coleguinha ter “direitos” e o outro ser preterido. Porque um tinha a cor “certa” e o outro, quem mandou ter a cor “errada”?
Eu posso entender que se estabeleçam certas “cotas”, em que se utilize o critério renda. Trata-se de enxergar a realidade, ver que somos um país desigual, e que os mais ricos têm vantagens que não têm os mais pobres. Os mais ricos têm melhores professores para seus filhos.
Então, um aluno mais rico que tem uma nota oito numa prova, pode ter a mesma capacidade, e fazer o mesmo esforço, que um aluno mais pobre que tirou uma nota seis nesta mesma prova. É sempre impossível definir os limites concretos desta situação, mas, em tese, dá para se ter uma idéia do que estou falando. Aquele aluno que teve maiores dificuldades, se tiver a oportunidade, pode igualar ou superar o aluno com as facilidades. Bastará para ele querer estudar, e ler alguns clássicos. É injusto, então, fechar-lhe as portas.
Então, penso que o melhor seria uma prova idêntica, e um acréscimo de pontos para os alunos com uma renda baixa. Os detalhes, claro, precisariam ser estudados e definidos.
Não é uma situação ideal. Ideal seria que todas as crianças frequentassem as escolas, e que as aulas tivessem um conteúdo bem definido para ser transmitido, igualmente, às crianças, respeitadas vocações e diferenças, e que os professores fossem bem preparados para transmitir este conteúdo, e que as escolas tivessem boas bibliotecas... a discussão sobre modelo de educação vai longe, e fica para outro artigo.
Mas, como eu dizia, um modelo que acrescesse a nota de quem tivesse uma renda familiar menor reconheceria a realidade de que a desigualdade do nosso país produz resultados diferentes, ainda que o esforço e a capacidade sejam iguais. E agiria para diminuir um pouco a injustiça desta situação.
Também traria a vantagem de não gastar recursos inutilmente, colocando em universidades pessoas que não têm capacidade mínima para frequentar uma, ocupando a vaga de pessoas com esta capacidade, simplesmente para “favorecer” aqueles que não têm renda. Acrescer a nota é um critério duplo: verifica a questão da renda e a da capacidade pessoal.
Finalmente, teria a vantagem de ser aplicado a qualquer um na situação de baixa renda, o que superaria a espinhosa questão de criar um sistema discriminatório a partir de supostas diferenças entre brancos, pretos, amarelos, vermelhos, roxos, lilases, azuis-turquesa e verdes.
Situação totalmente diversa ocorre com as cotas “raciais”. Nestas, como dito, crianças numa mesma escola, numa mesma classe, ou seja, de situações familiares/de renda, similares, estariam sendo divididas pela cor da pele. É preciso dizer mais para mostrar a injustiça? E o que dizer, se um filho de negros, de uma família bem estruturada, com um bom rendimento (é impossível?), fosse preferido para ocupar uma vaga na faculdade, no lugar de um branco, com melhores notas, filho de favelados (não existem?)?
A injustiça flagrante numa situação como esta que descrevo me parece o melhor argumento contra as cotas raciais. Nem quero me alongar sobre exacerbação de conflitos raciais, violência, o fato de que a cor não representa um acréscimo ou decréscimo de capacidade intelectual, inexistência comprovada pela ciência de “raças”, consequente impossibilidade de diferenciação racial, e quejandos. Claro, é tudo relevante, sério e terrível, mas o fato da injustiça gerada já basta para demonstrar a fragilidade do sistema.
Por último, alguns defensores do sistema de cotas raciais defendem que isto seria uma espécie de “compensação” à injustiça histórica da escravidão. E este argumento merece análise.
Sem dúvida, a escravidão é abominável, e devemos todos estar conscientes disso. Vá a Ouro Preto, Minas Gerais, visite as antigas minas de ouro, onde homens eram obrigados a viver a vida (curta) sufocando embaixo da terra, e eram selecionados por seu tipo físico, os mais baixos valorizados porque “cabiam” melhor nas minas, os mais altos tinham os testículos esmagados entre duas pedras, para não reproduzir filhos altos, menos valiosos...
Não aconteceu com extra-terrestres, com uma “raça” diferente da raça humana, ou entre monstros e demônios. Foi um fato, socialmente aceito, legalmente amparado, até 1888, entre nós. Falo “até 1888” não para dizer que está morto e enterrado no passado, mas para destacar que pouco mais de cem anos nos separam da lei áurea. Um nada histórico, e a chaga da escravidão continua no cerne de nossa cultura, produzindo seus efeitos deletérios. Quem sabe o quanto nós, brasileiros de hoje, e não do passado, desvalorizamos o trabalho, exploramos os pobres, devoramos os indefesos? Não é agradável pensar sobre isso, mas é necessário.
Não acredito, no entanto, que engendrar novas injustiças, no presente, vá fazer qualquer coisa para reparar, ou minorar, as injustiças do passado. Nosso compromisso deve ser com o concreto, com o real, com o próximo, com o presente. Nele é que podemos agir, e nossa ação deve estar pautada pela tentativa de criar instituições, leis, idéias, práticas, sistemas, inspirados na JUSTIÇA.
Temos o “branco” concreto, de carne e osso, na sua circunstância, vivendo a sua vida. Está correto que ele sofra a injustiça concreta, real, por supostos crimes que seus antepassados cometeram? Estaria correto, se o espancássemos, se o atirássemos na prisão, se o torturássemos, se arrancássemos sua língua, os seus olhos, isto corrigiria alguma injustiça que um seu suposto antepassado ideal tivesse cometido? É justo que pague aquele que não cometeu um crime, por aquele que cometeu? Eu sei lá se meu ta-ta-ta-taravô foi um criminoso, foi um assassino, foi um romano que queimava cristão, foi um grego, escravizado pelos romanos, foi um comerciante português que escravizava africanos, ou foi um imigrante que passou fome, ou um generoso que dava comida aos pobres. Ou foi um africano que guerreava outras tribos de africanos, e vendia os vencidos como escravos? Será que a cor da minha pele vai dizer isso? Eu não sei, e o que importa? Importa saber o que EU faço da MINHA VIDA. Importa saber se EU cometo o crime, se EU pratico a boa ação, se EU tenho o escravo, se EU luto pela justiça. Não me venham querer cometer uma injustiça, e justificar alegando que pode ser uma injustiça para o indivíduo, mas uma justiça para a “raça”, para a “classe”, para a “seita”, para o “partido”, para o “povo”, ou qualquer destas abstrações da hora que a humanidade corre para idolatrar, logo que tenha oportunidade. Só se pratica a justiça ou a injustiça para o concreto, o real, e nunca para o abstrato. Só se pratica o mal ou o bem para o ser humano, nunca para a humanidade. Quem é dona humanidade, que eu nunca vi?
Eu não sou senhor de escravos. Por que é que o meu lugar na universidade vai ser tirado, para ser ocupado por outra pessoa, porque ela tem a cor de pele “certa”? Percebem o absoluto non sequitur do argumento?
Exagero no exemplo para tornar mais claro o meu ponto: nosso compromisso é de criar uma sociedade em que haja maior justiça HOJE. Não se consegue isso criando sistemas que geram novas injustiças. O hoje é o único lugar em que nos é dado viver.
Para os exaltados que defendem um argumento contrário a este meu, como tenho visto em alguns debates sobre este tema polêmico, vou lembrar o óbvio: esta é a minha opinião, e eu tenho o absoluto direito a ter uma opinião, e a defendê-la, com argumentos. E tenho dito.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
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