terça-feira, 12 de maio de 2009

O manicômio tributário

A manchete do Globo do último domingo (10.05.2009) me trouxe à lembrança o artigo que postei em 22.04.2009, intitulado Daslu e a sanha tributária, sobre a condenação da dona das lojas Daslu a 94 anos de prisão por, basicamente, crime de sonegação fiscal. Diz a tal manchete do Globo, e a chamada que lhe segue: ARTIFÍCIO FAZ PETROBRAS PAGAR MENOS IMPOSTO – Empresa deixou de recolher R$ 4,3 bi desde dezembro.
Ora, se usarmos como critério o montante dos recursos desviados, qual pena deveria ser aplicada para os responsáveis pela sonegação tributária, no caso da Petrobras, em proporção com a pena determinada para a dona da Daslu? Alguns milhares de anos de reclusão? Mas será que vamos ter um juiz pra aplicar punição, qualquer punição, no caso da Petrobras? 4,3 bi, desde dezembro, ou seja, quase um bi por mês, que deixou de pingar nos cofres públicos. No jornal publicaram que a Cidade da Música, que custou R$ 600 milhões (até agora), poderia custear a construção de quatro hospitais. 150 milhões por hospital. Então, por mês, a Petrobras nos tirou meia dúzia de hospitais, com um troco de uns 100 milhõezinhos, pra comprar uns remédios. Pra você, por exemplo, que se aperta porque tem de gastar mil reais por mês pra comprar remédios, os 100 milhões te deixariam tranquilo por cem mil meses. Por 8.333 anos, e mais uns quebrados.
Mas temo que desta vez não veremos operações cinematográficas da polícia federal, com filmagens de helicópteros e cerco de refinarias de petróleo. Nem vamos ver juízes rigorosos condenando diretores e presidente da Petrobras a 15 mil ou 20 mil anos de reclusão. Estes espetáculos quadram bem quando é pra mostrar o rigor do rei para com os súditos. A Petrobras não é estatal? Então fica tudo em casa, entre amigos. Como lembra aquele nosso ditado, é para os inimigos o rigor da lei. Aos amigos, tudo.
Porque, brasileiros, somos estatólatras. Herança lusa, escravidão, nos fizeram assim. Temos por natural os privilégios, que os poderosos façam coisas que não é dado ao comum dos mortais fazer. É o país da impunidade. Dos poderosos, bem entendido. Dos que fazem as leis, dos que controlam as verbas. Caso exemplar: há alguns anos, um parlamentar entrou num restaurante onde almoçava um seu desafeto político. Executou-o, com seu revólver, à vista de todos. O que fez nossa Justiça? Pediu permissão ao nosso Congresso para processar o parlamentar. Foi-lhe negada, em votação secreta, e o processo suspenso à espera do fim do mandato. Acontece que o nosso probo parlamentar seguiu se reelegendo, e o caso todo já tem muitos anos, e eu nem sei o desfecho. Mas dá pra ter uma noção do que estou tentando dizer.
Mas se você for um ladrão pé-de-chinelo, cuidado, porque você pode acabar numa cela com mais cinquenta, onde deveria caber cinco. Sem data pra ser julgado seu processo, e é a coisa mais natural do mundo. Sorteio na cela pra matarem algum preso e sobrar mais espaço. Um país bonzinho, como se vê.
Mas voltando ao nosso tema tributário. Cobra-se muito (cerca de 40% do PIB; 4,8 meses do ano você trabalha pro Estado), e oferece-se pouco (saúde, segurança, educação, renda, andam em falta). Por que isso? Por causa dos mesmos vícios de que vimos tratando. Adoração do Grande Pai, o Estado, e de seus sacerdotes iluminados, os poderosos, os donos da coisa pública, os nossos “nobres”, velhos patrimonialistas.
Este termo, patrimonialismo, significa tratar a coisa pública como propriedade particular. São nossos parlamentares que viajam de férias com namorada, filho, sogra, avô, avó, cachorro e periquito, com passagens pagas pelo ilustre bocó-contribuinte. Aí é que a conta não fecha. Primeiro, o dinheiro arrecadado deve servir para pagar TODAS as mordomias dos nossos poderosos. Depois, deve servir para pingar esmolas assistencialistas nos currais eleitorais, para garantir a permanência no Poder desses muito espertos. No fim, a saúde, educação, segurança e renda podem andar em pandarecos. O nosso já tá garantido.
Nesse lindo sistema que temos, transparência, simplicidade, clareza, são indesejáveis. Como é que se vai favorecer o amigo, como é que se vai tosquiar até a pele do inimigo, se tudo for claro, proporcional, justo e simples? Uma única tributação, de alíquota fixa, sobre toda movimentação financeira? Mas aí vai pegar todo mundo que está lavando dinheiro, que tem uma capacidade tributária muito acima do rendimento que pode explicar. Mas este é um assunto pra ser tratado em outro artigo.
Para fechar este, quero só lembrar que, ainda que o “juridiquês” prevaleça neste caso da Petrobras, e que cada centavo dos 4,3 bi de reais que deixaram de pingar venha a ser justificado como manobras legais dentro do sistema, será preciso um bocado de cegueira para não enxergar que este sistema em que uma empresa pode deixar de recolher 4,3 bi por meio de brechas, e artifícios, e manobras, é um sistema essencialmente irracional, injusto, opressivo. Ganhou até um epíteto, que se firmou, de O manicômio tributário. Como eu disse, pode até ser manicômio, mas a alguns interesses serve que seja assim. Resta saber se o interesse geral, de transparência, racionalidade, justiça, algum dia irá prevalecer. Por enquanto, está perdendo de goleada pros interesses particulares e egoístas. E safados. E pra ignorância, e pra falta de crítica.

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