sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cem anos de solidão – Gabriel García Márquez







Este é um livro tremendamente bem escrito, e ainda assim não é um grande livro.


Impressiona, do começo ao fim, pelo domínio da língua demonstrado pelo autor; também, pela inventividade do autor, pela sua capacidade de fundir personagens, situações, histórias, numa trama complexa, de uma família, por gerações, em uma cidade, Macondo, em algum lugar da América Latina.


Márquez parece um equilibrista das palavras, que a toda hora deslumbra o olhar com sua habilidade. Até para o leitor é difícil acompanhar as idas e vindas de tantos Aurelianos, Remedios, Josés Arcadios. Já me sugeriram desenhar uma árvore genealógica para facilitar o acompanhamento da saga. Mas não carece tanto trabalho. Basta seguir o fluxo da leitura, e o que se tem para tirar está ali, à superfície: é o próprio deslumbramento com a linguagem, com a criatividade do autor, com o rigor formal da engenharia de sua história. Mas o veio se esgota por aí, na superfície.


Depois de tanto deslumbramento para os olhos, fica-se com a impressão incômoda de que não se chegou ao coração, ou ao cérebro. As páginas se sucedem, muitos acontecimentos, muitas reviravoltas, mas uma perguntinha vai ganhando corpo na cabeça: “pra que tudo aquilo?”. Chega-se ao final da leitura com uma sensação de ociosidade, de que todas aquelas páginas, muito bem escritas, serviram apenas para matar o tempo. Um jeito muito chique, muito ilustre, reservado para uma fina elite, sem medo das letrinhas, de matar o tempo. Faz-se sentir especial ser capaz de atravessar a selva bem urdida de palavras, criada por Márquez; ainda assim, tanta engenhosidade parece um desperdício, pois apenas serviu para matar o tempo. “Não se dispara um canhão para matar um mosquito”. Faz pensar em salões perfumados de fumo de cigarro e ócio, piadas inúteis sobre impunidade e política, quartos de burguesas entediadas, deitadas languidamente na cama, com um livro entreaberto no colo...


Esta impressão de ociosidade da leitura se reforça enquanto também leio o Henrique VI, de Shakespeare. Claro que qualquer comparação com o Bardo é covardia, mas o contraste fica evidente quando vemos o apuro de linguagem a serviço de uma trama urgente, intensa. A serviço de um comentário interessante sobre a guerra, sobre a política, sobre o ódio, ou o desespero, ou o regozijo, ou a vingança... sobre o humano, afinal.


Nem é das maiores peças de Shakespeare, com a poesia algo destemperada, em alguns trechos... como este, da Rainha queixosa pro Rei: “O lindo mar tempestuoso recusou afogar-me sabendo que tua crueldade me afogaria em terra com lágrimas tão salgadas quanto o mar.” Fortíssimo, não é mesmo? Só mesmo o gênio para fazer uma enxurrada de falas derramadas assim acabarem por parecer naturais. E quem sabe, inspirar um outro grande poeta a escrever: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!” Note-se que há dúvidas quanto à extensão do trabalho de Shakespeare nas três partes do Henrique VI.


Enfim, o livro de Márquez me pareceu muita forma pra pouco conteúdo.


Outro livro que me deu esta impressão de grande domínio formal da linguagem, combinado com idéias rasas, foi “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do português José Saramago. Muita pesquisa feita (encomendada por Saramago), muitas sentenças complexas, num belo português, de fato. Mas na hora de colocar as questões teológicas, filosóficas, o que parecia ser o grande objetivo do livro, tínhamos o questionamento mais pedestre e primário. Bastante decepcionante. Na comparação com Márquez, creio que o colombiano fica um pouco à frente no quesito “idéias”. No quesito habilidade com as palavras, vislumbro um empate técnico.


Márquez e Saramago podem ser comparados também por seu apoio a ditaduras comunistas, e em particular a Fidel Castro. Saramago ainda fez um mea culpa, embora tardio (antes tarde do que nunca), depois que Fidel mandou fuzilar sumariamente alguns cubanos ingratos, que tentavam escapar do paraíso comunista, em 2003.


Mas não é por implicância ideológica que faço estas minhas críticas a dois romances de escritores que, bem sei, possuem legiões de admiradores. Foi apenas a minha impressão pessoal, ao lê-los, não que eu seja o dono da verdade, mas isso nem precisaria dizer. Não peço atestado de boa conduta ideológica a nenhum dos autores que leio, e deploro quem o faz, à esquerda e à direita. Conheço muitos desses, com seus indexes librorum prohibitorum introjetados, suas “panelinhas” e seus odiados e perseguidos, ainda que não lidos...


Quanto a mim, leio Sade, leio Nietzche, leio Marx, leio Kissinger, Roberto Campos, Santo Agostinho, e qualquer outro “maldito”. Because I´m free / To do what I want / Any o´ time... concordo com o que melhor me apraz, discordo daquilo que me parece incorreto, critico, debocho, ou admiro... e me sinto enriquecido, com cada leitura.



P.S. Outro exemplo de habilidade formal, estética, sem uma correspondente qualidade de conteúdo, desta vez no campo do cinema, é o filme A Origem (Inception) – 2010. Impossível não reconhecer a meticulosa engenharia da edição do filme, sem falar na perfeição dos efeitos visuais, mas a historinha... até começa bem, uma ficção científica original, mas logo descamba pra monotonia de qualquer filmeco de ação, tendo de preencher o tempo com muitos tiros e explosões, com o agravante de quebrar a cabeça do pobre espectador, com as idas e vindas “artísticas” no tempo, elaboradas pelo estiloso diretor... coisa pra nerd, que vai querer ver dez vezes o filme, prestando atenção em cada detalhe... mas eu me pergunto: e pra quê? É um exercício que se esgota em si mesmo, sintoma de ociosidade...


Enfim, repito, é minha opinião pessoal. Se você descobriu um micro-cosmo brilhante de toda a História da América Latina no Cem Anos de Solidão, ou se você descobriu a crítica definitiva ao cristianismo e a todas as religiões no Evangelho Segundo Jesus Cristo, ou se você descobriu o sentido da vida no A Origem, acho ótimo. Fico muito feliz por você. Seja feliz. Podemos trocar uma idéia num dia desses, quem sabe? Posso te escutar com prazer, mas não me diga que eu não posso ter a minha opinião, porque são prêmios Nobel, ou porque venderam milhões, e ganharam não sei quantos prêmios... como também já disse: I´m free / To do what I want / Any o´time...


Cotações:


Cem anos de solidão – 3 estrelas


O Evangelho Segundo Jesus Cristo – 2 ½ estrelas


Henrique VI (3 Partes) – 4 ½ estrelas


A Origem – 2 ½ estrelas

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