sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Da configuração do Estado - Capítulo Três - Sobre a organização do trabalho

Num filme de guerra percebe-se o alto grau de organização e disciplina utilizados para planejar e executar uma campanha militar. É admirável a capacidade humana de organização e disciplina, dizer isso, é claro, não significa admirar a guerra, em si.


Fica-se pensando no quanto poderia ser obtido se os homens se organizassem como fazem nos exércitos, para conseguir outros fins, como a erradicação da miséria.


É verdade que a comparação deve ser feita com cautela: a disciplina férrea do quartel pode ser enervante e insuportável para muitos. Além disso, o senso de urgência numa guerra é muito maior, o que permite que as pessoas se organizem sob um signo muito mais intenso de disciplina. Aceitam melhor receber ordens.


Mas mesmo fora das guerras, o sonho e o ideal da disciplina permanece. Alguns desejam ser soldados, e há muitas ameaças contra a vida e a liberdade que pedem a intervenção dos soldados. É legítimo à sociedade se defender. Para isso, ela precisa da bravura dos soldados.


Mas para realizar bem a sua missão, o soldado precisa de organização e estrutura. A sociedade precisa de valores bem claros, e um deles é o respeito pela vida.


Policial não pode virar assassino; soldado não pode vender a honra.


Uma polícia honesta, empenhada na prevenção e investigação de crimes, com bons recursos, principalmente de inteligência, de comando, é uma polícia que cumpre sua missão.


Um soldado bem treinado, bem equipado, cuja missão não deborde o princípio de defesa, é um soldado que cumpre sua missão.


Uma carreira, uma oportunidade, para quem se dedica a esta missão com afinco, e que cumpre suas rigorosas exigências, traz a paz para a sociedade.


Muito diferente, por certo, daquilo que acontece no nosso país, onde se desvaloriza, se desqualifica e se corrompe nossos soldados e nossa polícia.


Mal remunerados, mal treinados, mal escolhidos. Com exceções e com progressos, por certo, mas ainda em grande medida assim.


Muito melhor seria se cada um vocacionado para estas carreiras de Estado, tivessem a chance de mostrar seu trabalho, e se fosse bom, seria aproveitado, e o soldado e o policial evoluiriam na carreira. Se não fosse bom, obrigado, mas precisamos de outra pessoa. Vá trabalhar em outra coisa.


Alguém na carreira, dependendo do trabalho que faz, precisaria mostrar aptidão física constante, desempenho constante, sob avaliação constante. Vida de quartel, exercícios, disciplina. Acordar cedo, fazer flexões, corrida, treinar luta, natação, etc. Teria de fazer cursos, aprender tática, direito, história. Treinar abordagem, treinar tiro, treinar patrulhamento. Trabalho em duplas, trabalho em grupo, palestras com especialistas.


Claro, tudo isso se estruturaria dentro das carreiras, com promoções bem avaliadas, e levando em conta as especifidades: os peritos criminais, os investigadores, as tropas de choque e de invasão, etc.


Isso tudo, é verdade, num serviço público bem estruturado, e com tradições bem diversas das nossas. Nossa cultura é a do concurso público: uma provinha, como de colégio, e se garantiu numa carreira. Treina-se dando três tiros, gritando “sim senhor”, e levando uns tapas na cara. Aí, está formado para ser jogado na rua, à própria sorte, mas também sem nunca ser avaliado: pode-se fazer os negócios que quiser, pode-se exibir patrimônios absolutamente incompatíveis, pode-se arrebentar uns pobres favelados, pode-se até torturá-los e matá-los, que ainda se vira super-herói de filme que a fina sociedade aplaude com regozijo...


Nas altas cúpulas da carreira se cai de pára-quedas, também pelo famosa provinha de concurso público. Aí, claro, com salários mais altos, e para o bico das classes mais ricas, que estudou em colégios particulares, fez faculdades de direito, cursinhos especializados, etc. Ou então, outra de nossas tradições, é-se indicado politicamente, para um dos tantos cargos de confiança, de livre nomeação e exoneração, nos cumes da carreira...


Mas além das carreiras envolvidas diretamente com as questões de vida e morte, soldados e polícias, seria útil ter uma organização e disciplina eficientes para lidar com velhos problemas nacionais, como a miséria e a penúria.


Se os homens se organizam para a guerra, por que não se organizar para ganhar a vida com um trabalho honesto? Por que não, à maneira de exércitos, construir os galpões, distribuir os equipamentos, as instruções, e se empenhar em produzir tantas coisas de que a sociedade precisa: roupas, ferramentas, móveis, alimentos, etc.


Certo, já existe esta disciplina e organização nas fábricas do sistema capitalista, mas eu não estou de forma alguma propondo uma substituição em regra do sistema capitalista. Este já se provou amplamente superior à estatização excessiva. Fora que esta estatização sempre se mostrou perniciosa ao homem, devorando-lhe a liberdade e constituindo sua vida num inferno, vide os regimes fascistas, vide os regimes comunistas. Quem não sabe das infinitas prisões, dos trabalhos forçados de escravos, das execuções em massa, das perseguições constantes, é burro que não conhece História. Ou então insensível, possuído pela ideologia, que se recusa a enxergar. O pior cego é aquele que não quer ver.


Os “exércitos” mantidos pelo Estado para fazer coisas úteis para a sociedade não visariam, portanto, substituir o capitalismo. O regime de mercado, em que as pessoas têm liberdade para ser investidores, se quiserem e puderem. Como disse Adam Smith, o benefício privado se converte em benefício público. O açougueiro trabalha pelo dinheiro, mas fornece a carne de que precisa a sociedade.


Os “exércitos” organizados pelo Estado se destinariam, assim, aos que voluntariamente desejassem trabalhar neles, não tendo conseguido um emprego do mercado.


Seria útil à sociedade se organizasse estes “exércitos” de trabalho: teria mais quantidade de bens e serviços, a preço mais baixo, além de se livrar de diversos efeitos nocivos decorrentes do aumento da miséria: maior desestruturação de famílias, maior criminalidade, maiores índices de alcoolismo, de adicção às drogas, maior o número de desnutridos, de doentes epidemiológicos, etc, etc.


Também seria muito útil para os que tivessem a oportunidade de um trabalho: afastar o fantasma da fome, a insegurança quanto ao futuro da família. E a chance de servir também à sociedade, prestar sua cota para o bem comum.


Outro benefício: acabariam as histórias de vitimização e coitadismo: ele roubou, ele matou, ele destruiu, ah, mas foi porque não lhe deram uma chance... Pois bem, dê-se a chance, um trabalho decente para cada um em condição de fazê-lo.


Mas, como eu disse, não é para competir ou substituir a iniciativa privada. É difícil equilibrar tal sistema? Sem dúvida, mas gostaria de lançar uma idéia para que se começasse a pensar a respeito:


Estes “exércitos” de mão-de-obra seriam redes de segurança para amparar os que não têm outra oportunidade. Teria de ser destinado a preparar e fornecer meios para que os interessados pudessem se dedicar a uma tarefa simples, de uso intensivo de mão de obra, bem determinada, e cujo rendimento fosse suficiente apenas para manter o trabalhador e sua família.


Seriam necessários especialistas do trabalho para definir e organizar estas tarefas: seria fabricar roupas, fabricar ferramentas, fabricar tecido? Seria trabalhar uma terra, aprender técnicas agrícolas? Para cada região teria de ser definido e organizado o trabalho, mas com aquelas mesmas características mencionadas: uso intensivo de mão de obra, tarefa simples, fácil de fiscalizar, com rendimento suficiente para manter, não enriquecer, os trabalhadores associados.


O livre mercado se organizaria equilibrando-se nesta realidade: se, por exemplo, um “exército” de mão de obra de uma região fabrica calças, o mercado fabricará, digamos, camisas. Ou calças de uma outra qualidade, com outro público-alvo, daquelas fabricadas pelas fábricas estatais. Estas apenas fabricariam calças simples, a serem utilizadas, digamos, pelos próprios trabalhadores dos “exércitos” de mão de obra. Deveriam ser de boa qualidade, segundo a orientação dos especialistas que organizassem a tarefa, mas sem os modismos, sem os enfeites, das calças vendidas pelo mercado.


Um outro ponto: trazendo toda a mão de obra disponível para um trabalho digno e honesto, a sociedade poderia se gratificar concedendo-se, de maneira geral, menos horas de trabalho.


Em outras palavras: nesta sociedade, nem ao livre mercado, nem ao trabalho social, para o Estado, se permitiria a escravização do homem pelo homem.


Isto se conseguiria da seguinte forma:


Cada trabalhador da iniciativa privada teria direito a uma remuneração mínima de X por hora de trabalho. Seu empregador teria direito a, digamos, 6 horas do seu trabalho por dia, 5 dias por semana. Complementando este salário, o Estado, a partir da tributação, poderia complementar o salário com um pagamento de 10 X horas para cada trabalhador.


Neste sistema, a carga pelo pagamento de horas não trabalhadas não é suportada pelo empregador. É suportada pelo Estado, numa tarefa de redistribuição do que foi arrecadado com tributos, de toda a sociedade, que teria o retorno em bem-estar social pelo pagamento destes tributos.


Os empregadores, gastando apenas com as horas trabalhadas, iria gerar mais empregos por ter de contratar mais pessoas para fazer o trabalho, dada a redução da carga horária.


O Estado promoveria o bem-estar social na medida em que cada pessoa poderia se manter, e à família, com tempo livre para aproveitar a vida como melhor lhe aprouvesse. Por outro lado, estimular-se-ia o trabalho, e não o parasitismo. O prêmio iria para cada trabalhador, não para os preguiçosos. Um salário para quem não trabalha, só para aqueles entrevados numa cama. E olha que mesmo para muitos que estão numa cama seria possível ter um trabalho compatível, se houvesse uma suficiente organização.


Ao lado desses trabalhadores da iniciativa privada, teríamos os trabalhadores para o Estado. Nas mesmas condições, o trabalhador trabalha o mesmo número de horas de seus colegas da iniciativa privada, e recebe as horas a mais que elevam seu padrão de vida. Sendo que as horas pagas pelo Estado para os seus trabalhadores têm de ser compatíveis com as horas pagas para funções similares, de mesma exigência de escolaridade, pela iniciativa privada.


Nada de termos ascensoristas no Congresso que ganham mais do que a maioria dos médicos.


Se o Estado precisa dos seus jardineiros, dos seus garis, dos seus varredores de rua, dos seus faxineiros, que o salário seja compatível com a profissão.


Se o Estado tem seus médicos, seus professores, seus advogados, seus juízes, seus generais, seus engenheiros, que a remuneração seja digna e compatível. Que se considerem anos de carreira, que se considerem títulos, que se considerem condições penosas e de risco, que se considerem posições de chefia... critérios objetivos.


E aí o Estado poderá pagar pelo trabalho destes homens e mulheres, e dar-lhes ainda o bônus de horas extras. Horas X, se seu trabalho é de primeiro grau, com relação à sua hora de salário; 2 X, se é um trabalho para segundo grau; 3 X, se é de terceiro grau, em relação ao salário. Da mesma forma que se faria para o trabalhador da iniciativa privada.


Finalmente, para os excluídos e marginalizados, sem condições de desempenhar um papel dentro das hierarquias da iniciativa privada e do Estado, se reservariam os “exércitos”. No caso, receberiam a remuneração mínima, mas também trabalhariam o mesmo número de horas. Mas não receberiam o salário adicional, como forma de desestimular o comodismo de não buscar uma qualificação e emprego.


Poder-se-ia, no entanto, oferecer algum outro tipo de compensação, além do prêmio em dinheiro: alojamento, recebimento de alimentos, de roupas, calçados, etc.


Uma sociedade com este grau de organização do seu trabalho, alguém duvida que seria uma sociedade próspera e feliz? Seus membros livres para escolher o trabalho que melhor os realiza, e não precisando se escravizar para ganhar o seu pão. E tendo a segurança de não experimentar a miséria e a fome, decorrentes de desemprego ou falência.


Como último recurso, saber que haveria um banco e uma mesa, e uma ferramenta para realizar alguma tarefa simples. E quem sabe, a partir daí, dar a volta por cima?


Quem sabe, alguém com a segurança da renda, e com as horas livres, poderia estudar até em casa, e se tornar um médico ou um professor? A sociedade tem de prover as oportunidades.


Ou quem sabe, alguém com a segurança da renda e com as horas livres, não poderia escrever um maravilhoso romance, uma maravilhosa peça de teatro? Ou quem sabe, não poderia ter a idéia para um grande invento, algo que renderia milhões para aquela sociedade?


E ainda que não houvesse nada disso, não seria bom poder simplesmente passar mais tempo com os filhos? Ir a um estádio de futebol, ou a uma sessão de cinema (também movimentam a economia!)?

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