
William Blake: Nabucodonosor
“Todas estas coisas vieram sobre o rei Nabucodonosor.
Ao fim de doze meses, quando passeava no palácio real de babilônia,
Falou o rei, dizendo: Não é esta a grande babilônia que eu edifiquei para a casa real, com a força do meu poder, e para glória da minha magnificência?
Ainda estava a palavra na boca do rei, quando caiu uma voz do céu: A ti se diz, ó rei Nabucodonosor: Passou de ti o reino.
E serás tirado dentre os homens, e a tua morada será com os animais do campo; far-te-ão comer erva como os bois, e passar-se-ão sete tempos sobre ti, até que conheças que o Altíssimo domina sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer.
Na mesma hora se cumpriu a palavra sobre Nabucodonosor, e foi tirado dentre os homens, e comia erva como os bois, e o seu corpo foi molhado do orvalho do céu, até que lhe cresceu pelo, como as penas da águia, e as suas unhas como as das aves.
Mas ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor, levantei os meus olhos ao céu, e tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração.
E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?
No mesmo tempo tornou a mim o meu entendimento, e para a dignidade do meu reino tornou-me a vir a minha majestade e o meu resplendor; e buscaram-me os meus conselheiros e os meus senhores; e fui restabelecido no meu reino, e a minha glória foi aumentada.
Agora, pois, eu, Nabucodonosor, louvo, exalço e glorifico ao Rei do céu; porque todas as suas obras são verdade, e os seus caminhos juízo, e pode humilhar aos que andam na soberba.” - Daniel, 4, 28-37
“Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” - Marcos, 8, 36
“Sempre Nietzche. Pessoas que não elaboraram em si uma clara visão do mundo, que separe o bem e o mal. Antes se intimidavam, ficavam à procura, mas agora, acreditando encontrar-se além do bem e do mal, permanecem aquém, isto é, quase uns animais “ - Leão Tolstoi
Leio na Veja de 21.07.2010 que foi lançado um filme, Vincere! (Vencer!), do cineasta italiano Marco Bellocchio, sobre um episódio obscuro da biografia do ditador Benito Mussolini: a história de sua primeira esposa, Ida Dalser, e do filho que tiveram, Benito Albino Mussolini.
Ida conheceu Mussolini em 1909; era dona de um salão de beleza em Trento, no norte da Itália, e vendeu tudo que possuía para financiar o jornal Il Popolo d´Italia, instrumento de Mussolini em sua busca pelo poder. Mas Mussolini casou-se uma segunda vez, o bígamo, com Rachele Guidi. E, para evitar o constrangimento de ser confrontado com seu passado, e os prejuízos à sua carreira política daí decorrentes, procedeu à sua particular reescritura da História: sua polícia secreta sequestrou os documentos referentes a Ida e seu filho, e os internou à força em manicômios distintos, onde viriam a morrer. O filho, aos 26 anos, sendo obrigado a tomar injeções de drogas potentes. Um pequeno sacrifício para que o grande homem ficasse livre para realizar seus desígnios superiores: levar o povo italiano a uma tirania opressiva e a uma guerra ruinosa.
O caso permaneceu obscuro até poucos anos atrás, quando o jornalista Marco Zeni conseguiu desencavá-lo em todos os detalhes sórdidos. Mas não devemos nos levar por preconceitos pequeno burgueses, reacionários. Maquiavel já nos ensinava que o Príncipe deve ter uma moral pública distinta da moral privada. Na luta pela conquista e manutenção do poder, ele não se deveria deixar embaraçar pela moral convencional de seus súditos, esses otários. Falar uma coisa, fazer outra. Salvar as aparências. Se o documento é destruído, se a oposição é suprimida, se o filho está trancado no manicômio, quem vai falar diferente?
Ousadia, violência, eram os lemas fascistas. Vontade, no lugar do intelecto. Vontade de potência, como dizia Nietzsche. Pensar atrapalha muito, dá trabalho. Nada de discussões e de Parlamento, nada de democracia. Melhor o líder enérgico, decidido. Lenin já mostrara o caminho das pedras, ao tomar o poder na Rússia, em 1917: ousadia, decisão firme, deixar de lado os escrúpulos. O grupo iluminado, o líder iluminado. Os detentores do pensamento “certo”, da fé “certa”. Podiam não ser a maioria, mas tinham os rifles, e ocuparam o comando da polícia e do exército. Podiam não ser a maioria, mas sabiam o que era bom para o povo: detinham a “chave da História”. Podiam fechar o Parlamento, para quê Parlamento? Podiam esmagar a oposição, para quê oposição? Se os “bons” já estavam no Poder, para quê mudar? Quem desejasse uma coisa dessas só podia ser louco, estúpido, ou mau mesmo. Um reacionário, conservador, argh!, um tipo desses que atrasa a marcha da História, que impede o Paraíso na Terra.
Manicômios, Campos de Reeducação, Gulags ou Paredões para estes! Justificam toda a santa ira dos justos!
Aliás, Mussolini tinha sido um socialista na juventude. Mais tarde é que ele percebeu que as “condições objetivas” para a tomada do poder favoreciam mais aos que exploravam o medo da sociedade italiana de cair numa ditadura socialista. Mussolini mudou de ideologia como quem muda de camisa, mas o corpo debaixo da roupa permaneceu o mesmo: a mesma vontade de poder absoluto, a mesma determinação para instaurar uma ditadura. Ele o líder, “il duce”, o Führer. Absolutamente, eternamente. Ou até a morte, porque da morte ninguém escapa. Oposição pro buraco. Depois se reescreve a História, aqui e ali, e sempre tem uns bobos pra engolir.
Pronto. Estava definido o padrão para justificar e implantar as ditaduras. Em 1923 a Espanha seguiria o roteiro, com Miguel Primo de Rivera. Em 1928 foi Portugal, com Antonio de Oliveira Salazar. Em 1933, Hitler, na Alemanha. Também em 1933, a Áustria seguiu a onda com Engelbert Dollfus e, após seu assassinato, com seu colaborador Kurt von Schuschnigg. Em 1934 foi a vez da Letônia. Seguiu-se a Bulgária em 1935, a Grécia em 1936, a Romênia em 1938. As democracias européias agonizavam.
Pelos lados do Trópico de Capricórnio também sofríamos as guerras cruentas pelo poder, e os golpes “salvadores”. A velha gangorra entre anarquia e ditadura. A Argentina teve seu golpe em 1930 com o general José Félix Uriburu. O Paraguai, em 1940, com o general Moriñigo. No Brasil tivemos o Estado Novo, com Getúlio Vargas, em 1937.
Esta relação, claro, não se pretende exaustiva; possui fins meramente ilustrativos.
Os ataques à democracia desembocariam na Segunda Guerra Mundial, e se prolongariam na Guerra Fria. Mas mesmo depois da queda do muro de Berlim e do esfacelamento da União Soviética, não se atingiu qualquer “fim da História”. A tentação totalitária está sempre rondando, torcendo por crises e guerras pra botar suas manguinhas de fora.
Humano, demasiado humano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário