
"Caifás foi quem tinha aconselhado os judeus: "É melhor que um só homem morra pelo povo." - João 18, 14
Ótima essa declaração do secretário da Receita Federal, Otacílio Cartaxo, em depoimento à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, sobre a quebra do sigilo fiscal do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge: o secretário disse que os acessos aos dados tinham sido feitos por vários funcionários, e que ele sabia os nomes dos funcionários. Só que não iria revelá-los, pois essas informações estão protegidas por sigilo
“Protegidas por sigilo”, cara pálida? Quem é que é protegido por esse sigilo? Os funcionários que cometeram a irregularidade, ou aqueles que se beneficiariam dos dados fiscais para montar dossiês contra adversários? Curiosa inversão. Protegidas por sigilo deveriam estar as informações dos pagadores de impostos. O Estado te obriga a pagar, te obriga a fornecer dados. O mínimo que o Estado tem de fazer é impedir que estes dados sejam acessados por pessoas desautorizadas, sabe-se lá com que fins.
Note-se que o secretário da Receita afirmou também que não recebeu qualquer pedido do Ministério Público ou da Justiça para vasculhar as declarações de Eduardo Jorge: “Não tramitou no gabinete do secretário nenhum pedido de quebra de sigilo.”
Ou seja, os acessos não foram motivados por razão de serviço. Ah, mas quanto a isso a Receita divulgou nota oficial para informar que "o responsável pelo acesso imotivado estará sujeito à penalidade de advertência ou suspensão de até noventa dias."
O colunista político Merval Pereira, em artigo publicado no Globo de 09.07.2010 fez um comentário certeiro a respeito desta nota: “Esse tratamento burocrático de uma transgressão legal com fins políticos seria risível se não significasse mais uma ameaça ao estado de direito no país”.
Este lance todo me lembra o caso Watergate, quando, em 1972, foi descoberto um esquema de espionagem promovido pelo Partido Republicano, na presidência dos EUA com Richard Nixon, contra seus adversários do Partido Democrata. Lá, o caso assumiu proporções de grande escândalo político, obrigando Nixon a renunciar, em agosto de 1974. Havia naquele ato um flagrante abuso de poder, uma ameaça ao próprio regime democrático.
Aqui, o caso da Receita anda circulando pela décima página dos jornais, e o secretário da Receita, em depoimento ao Senado, pode se dar ao luxo de dizer que os nomes dos funcionários envolvidos está protegido por sigilo. “Não existe pecado / do lado de baixo / do Equado-or”.
Estado que desrespeita direitos individuais; Estado que usa seus serviços de informação, seus aparatos técnicos, fiscais, policiais, para espionar e esmagar os desafetos políticos do governante de ocasião, ou para favorecer os seus aliados, empresários, sindicatos, ONGs, movimentos sociais, militantes; um tal Estado com certeza não é um Estado democrático, republicano, seguidor do princípio da igualdade de direitos e da impessoalidade.
Um tal Estado flerta perigosamente com o totalitarismo. Experiências históricas mostram bem isso: o comunismo na Rússia, o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, pra lembrar casos recentes. Todos mantinham suas polícias secretas, a cheka na Rússia, a Ovra na Itália, a Gestapo na Alemanha; a Alemanha Oriental teve a Stasi. Nós tivemos o SNI, nos nossos anos de chumbo. E Cuba tem a sua; e a Venezuela de Chavez também; e todos os Estados totalitários repetem este padrão de utilizar seus aparatos para espionar e esmagar opositores. Estes órgão estão liberados para cometer muitos crimes, fazer escutas ilegais, invadir residências, sequestrar, prender, torturar, fazer “desaparecer”... na propaganda oficial, em que os Estados totalitários também investem muito, justifica-se todo crime contra os adversários, ainda que de forma implícita, sub-reptícia.
A idéia que é veiculada por essa propaganda oficial é a de que o governante, o Partido, o líder, é o único Iluminado, o único bem intencionado, o único que sabe o que fazer para conduzir o povo, o único com a “chave” da História. Logicamente, só a estes Iluminados deve ser permitido o exercício do poder.
O outro lado desta moeda é a demonização da oposição. Se eles não viram a Luz, se eles são reacionários, burgueses, ou, por outro lado, se eles são comunistas comedores de criancinhas, neca de lhes permitir dar palpite por aqui. Contra estes vale todo o peso da lei, e, se não for o bastante, todo o peso do crime extra-oficial. É o mal menor, melhor que permitir a estes impuros, infiéis, alcançar o poder e prejudicar toda a sociedade, botar a perder todas as “conquistas” da revolução, do governo dos Iluminados...
Em oposição a este tipo de pensamento e de prática está o espírito republicano, democrático. Para este, os cidadãos são iguais, então possuem igual direito de votar e ser votado. A maioria define quem exerce o poder, sempre de modo limitado, sendo prevista a alternância.
É um espírito de moderação, que provoca asco e deboche de tantos Senhores da Verdade, fanáticos, radicais, que têm sozinhos a solução para todos os problemas. O espírito democrático não propõe uma “solução final”, ou algum “fim da História”. Defende o processo, um perene processo, em que os direitos dos indivíduos são preservados, o exercício do poder é contido, os problemas da sociedade, em cada época, encontram seu canal de solução e debate. Nunca pressupondo, como solução, o extermínio do “outro”, o diferente, o opositor.
Tampouco se propugna a necessidade de reinventar a roda, ou de botar fogo em tudo pra recomeçar do zero. Não se pretende uma reengenharia do homem, um super-homem, uma superação definitiva de conflitos, a perfeição neste Vale de Lágrimas, uma fórmula mágica que resolva tudo, que esclareça tudo, “A propriedade é um roubo!”, “Pelo fim da luta de classes!”, qualquer desses chavões simplistas...
Considera que certas idéias básicas devem gerar um consenso, e que o eventual ocupante do Poder Público deve preservar tal consenso. São elas: igualdade de direitos, direitos fundamentais preservados, limitação do Poder, alternância, liberdade de expressão, de voto, de associação, de trabalho... um ambiente de paz e de ordem, que permita o progresso através do trabalho honesto. A cada um de acordo com seu mérito, o que não significa absolutamente deixar para trás os que não forem tão bem sucedidos.
O complemento para o reconhecimento e a proteção das liberdades individuais é a extensão de certos bens e serviços para aqueles que, mesmo se dispondo a trabalhar honestamente, não foram favorecidos pela sorte, e têm a necessidade de um amparo, a ser dividido pela sociedade. Uma “rede de proteção social”, que impeça os resultados mais sombrios da miséria, da falta de esperança.
Educação de qualidade para estes cidadãos e seus filhos, rede hospitalar, oportunidade de emprego, complementação de renda... tudo isto pode e deve ser organizado pela sociedade. Não é em benefício exclusivo dos que são atingidos por tais medidas de amparo, mas uma sociedade que consegue se organizar para prover tal amparo, espera-se, atinge o seu próprio benefício, em termos de segurança, de desenvolvimento sustentado, de qualidade de vida de seus membros.
Bem diferente do clima de guerra, ódio e inveja, e fanatismo, estimulado por alguns aspirantes ao Poder absoluto, sem escrúpulos. Estes demagogos que estimulam qualquer baixo instinto da sociedade, em busca do aplauso fácil. Brincam com fogo, e às vezes são devorados pelo monstro que criam. A História anda em círculos, tristemente. Enfim... “A História é um pesadelo, do qual tentamos acordar.” – James Joyce
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