O princípio fundamental é que o Estado deve ser democrático. Mas democrático de fato, e não com uma mera aparência, ou proclamação, de seu caráter democrático.
Lembremos que Estados violentamente opressores inscreviam em suas Constituições os nomes “República Democrática”. E mesmo Estados que possuem admiráveis instituições democráticas estão sujeitos a manchas históricas de perseguição a críticos, a poetas, a minorias. A História não é um tabuleiro com peças pretas e brancas, e ter a humildade de reconhecer isto é submeter-se à realidade, e o primeiro passo para lidar com ela.
A realidade é que não existem Estados perfeitos, nações divinas, homens sem pecado. Não existe uma “classe” redentora, ou uma “raça” redentora. A realidade é complexa. Lutar contra é tolice.
Deixar de lado inúteis buscas por “perfeição”, por uma infantil noção de “pureza”, geradora de intolerância e justificadora de extermínios, é medida salutar para o pensamento. O que não significa dizer que a busca por melhorias não é desejável ou exequível.
Afinal, cada conquista de direitos individuais foi conquistada por altos preços. Nenhuma delas caiu dos céus. Nenhuma delas foi gerada pela falta do sonho, do pensamento, e da atividade do homem. Se foi instituído um voto livre, periódico, secreto, se foi instituído um sistema de seguro social, se foi instituído um princípio de “no taxation, without representation”, se foi adotado um princípio de separação dos poderes de Governo, deveu-se ao muito sangue, suor e lágrimas dos homens.
Preservadas estas conquistas, dentre tantas outras, tão importantes, novas conquistas podem ser alcançadas, por que não? A batalha é para todo dia, regozijai-vos no bom combate. Aprofundar a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça, a paz social, a prosperidade...
E o único meio pra isso é dividindo o poder político e a responsabilidade entre os cidadãos. Os membros adultos da sociedade, a quem deve ser atribuído DE FATO o poder e a responsabilidade de decidir.
Dirão que muitos não se interessam por política. Mas também, mantêm a política como coisa alheia, distante, inacessível, para o cidadão comum. Nestas condições, realmente não faz sentido se interessar por política. Nada se consegue de prático ou de útil, em troca deste interesse. Apenas para os interesses pequenos, da politicagem, que passam a ocupar todo o espaço.
Ao invés de ter a informação e a possibilidade de influir sobre alguma decisão de seu interesse, sobre algum uso do seu próprio dinheiro, ele vai simplesmente servir de cabo-eleitoral pra algum cacique, em troca de um empreguinho, de uma verba, ou algum outro interesse particular.
Vai votar em qualquer candidato despreparado, por protesto, por piada, por desinteresse. Mas se aquele cidadão sentisse na própria carne o peso de suas escolhas, então seria bem diferente.
Note-se: não se pode obrigar ninguém a ter interesse ou participar da política. Mas tem de ser garantido a todos o direito de participar e influir no exercício do poder. Afinal, a democracia diz que todo o poder emana do povo.
Não basta de dois em dois anos ir às urnas para escolher algum candidato. Isto é indispensável, mas a democracia não se resume a isso. Ela precisa garantir que aquela comunidade específica que elegeu um representante tenha pleno acesso a ele, para cobrar-lhe qualquer explicação, para encaminhar os seus pleitos, para prestar contas do dinheiro que é destinado para aquela comunidade, para interceder por aqueles membros da comunidade em qualquer de suas legítimas demandas ao Poder Público.
Isto significa vincular o político a TODOS os membros da comunidade que o elegeu (não apenas aos seus eleitores). Eles serão os seus fiscais, e o político eleito terá de cumprir suas funções de representante da comunidade. Terá de lhes prestar informações, encaminhar suas queixas, cobrar as respostas, discutir os projetos, ouvir as sugestões, etc etc.
De que maneira se consegue esta vinculação do político à comunidade? Primeiro, reduzindo, delimitando, especificando a comunidade que tem vinculação com o político.
Para Platão, a cidade ideal deveria ter um número estacionário de 5.040 famílias. Ele não escolhia o número 5.040 por acaso. Ele atribuía um valor místico, idealizado a este número, que é o produto dos sete primeiros números (1x2x3x4x5x6x7), sendo o próprio sete um número considerado divino em algumas culturas antigas. Para os judeus, por exemplo, o sete era o número de Deus, representativo da perfeição. 777 era o número divino, como 666 era o número da besta.
Questões de simbolismo, sim, mas havia uma lógica a permear o raciocínio de Platão: uma cidade com poucos habitantes não vai conseguir prover os serviços, prover a segurança. Logo acabará exterminada ou escravizada, se não cair no caos por conta própria.
Uma cidade com um número excessivo de cidadãos, por outro lado, promoveria a falta de responsabilidade pessoal dos cidadãos. Seria um local onde poucos se conhecem, e o controle moral, social, se faz de forma reduzida. Uma tal sociedade tenderia para a tirania, para a corrupção.
Na primeira vez que li esta idéia de Platão, de estacionar o número de famílias em uma cidade em 5.040, cerca de 20 mil habitantes, ela me pareceu ridícula. Fiz a comparação com nossas cidades atuais, de dez milhões de habitantes, de 30 milhões de habitantes. Mas agora vejo que esta comparação é indevida, pois o termo cidade tinha para Platão um significado diferente do nosso.
Cidade-Estado, a pólis grega, era uma unidade administrativa autônoma, soberana. Neste sentido se comparam aos nossos Estados atuais. Elas faziam suas leis, elas as executavam, elas faziam seus julgamentos. Podiam se organizar democraticamente, como a Atenas de Platão, ou, muito mais comum, em tiranias de reis.
Considerando este sentido de unidade independente, a idéia de Platão de formar as unidades num número limitado volta a fazer sentido. Talvez, para funcionar de modo mais adequado a organização política, ela precise ter um número estável de membros.
Claro, não significa que se vá pegar alguma cidade e expulsar o número excedente de habitantes, ou fazê-los se multiplicar em fábricas para atingir o número certo. Mas se pode dividir em unidades administrativas autônomas uma grande cidade, deixando aquelas comunidades envolvidas mais diretamente com seus representantes.
A divisão administrativa do poder político não se coloca contra a idéia de nação. A nação foi a forma mais natural de dividir os Estados. Um grupo humano possui certos laços afetivos em comum, que faz uns se sentirem brasileiros, outros americanos, outros russos, ou japoneses, ou judeus, ou palestinos.
Respeitar a diferença foi a forma mais sensata de evitar o conflito. Alguém pretender acabar com as unidades nacionais, em prol de algum outro valor, vai estar cometendo um crime e um erro. As nações lutam insistentemente para se organizarem num Estado próprio, que reflita suas leis, seus costumes. E a tendência do mundo foi a de ir se organizando nestas unidades nacionais, apesar de conflitos remanescentes de bascos, palestinos, antiga Iugoslávia, nações africanas reunidas artificialmente na época em que foram submetidas ao poder imperialista. Mas apesar disso, o princípio proclamado no início do século XX, “uma nação, um Estado”, veio se firmando historicamente.
Ou seja, dar mais atribuições decisórias, dar mais independência a unidades administrativas/políticas, não significa desprezar as organizações políticas mais amplas: vai continuar a haver um Japão, ou um Brasil, com a necessidade de ser governado, não há dúvida. O Mundo Moderno se dividiu assim, até por conta do crescimento demográfico, tecnológico, econômico, etc.
Tampouco a completa independência entre pólis rivais não deve ser vista como um modelo da perfeição. Era a experiência que Platão tinha, a realidade que concebia. Ele não podia prever dois mil anos no futuro, para enxergar a moderna Tóquio, e o Japão, e a China. Teria ficado muito surpreso se os visse.
Mas as pólis de Platão, completamente independentes, viviam em disputas e guerras entre si, apesar de toda a afinidade de língua, origens, costumes, e outras. Cada uma, embora tão próxima da outra, teve desenvolvimentos radicalmente diferentes, e progressivamente antagônicos.
Esparta, potência guerreira terrestre, Atenas, potência guerreira marítima; Atenas, democratizada, próspera, moderna; Esparta, hierarquizada, disciplinada, militarizada, tradicional, conservadora. Acabaram numa guerra terrível, fratricida, enfraquecendo os gregos, abrindo caminho para a perda da liberdade diante de invasores externos: os macedônios, os romanos. Leia-se o fascinante Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso.
Ou seja, pode-se buscar um meio termo entre a completa independência política das cidades, e a ausência, na prática, da participação política e decisória de cada cidadão no governo da sua cidade.
Na verdade, já existe uma tal hierarquização definida na Constituição Federal. Os Municípios têm certas atribuições, e os Estados, e a União. Cada um com sua participação na elaboração das leis, com seus corpos legislativos, executivos.
No Brasil, historicamente, e por uma questão de cultura, de tradição, a União, na prática, concentra poderes em demasia, o que faz gerar um desequilíbrio anti-democrático. Porque concentrando muito do poder no centro, retira-se-lhe das pontas, os cidadãos, e o poder, consoante o princípio democrático inscrito na nossa Constituição, emana do povo. Como proclamaram os princípios pelos quais se fez a Revolução Francesa, como foi conquistado pelos súditos ingleses, como resumiu brilhantemente Abraham Lincoln: “do povo, pelo povo, para o povo”.
O mundo moderno proclamou como seu ideal a democracia, e demonstrou que seus ideais podem prosperar, quando são defendidos. E este ideal encontrou defensores inspirados, dispostos a correr o risco da própria vida. Não falo dos assassinos e dos mentirosos, mas daqueles de espírito verdadeiramente democráticos. Que acham ofensivo, ridículo, ou abominável, a pretensão de se ter mais direitos do que o outro. E que não estão dispostos a aceitar isto.
Do meu ponto de vista, o caminho atual para aprofundar este ideal democrático passa por esta redistribuição do poder, para as pontas. Tornar mais próximo, mais efetivo, mais real, o exercício do poder pelo cidadão. Não basta a palavra bonita, não basta inscrever numa lei. É preciso ganhar consciência, ganhar carne, ganhar vida, o ideal democrático.
É preciso que seja praticado, que seja aplicado pelas Cortes, que seja conquistado. É preciso que acabe o privilégio, que seja visto como uma vergonha, como inadmissível, inaceitável, abominável. É preciso que se inscreva nas consciências.
Receber favores do Estado, receber salários e pensões diferenciados, receber privilégios, receber mordomias, o que é isto senão formar uma classe incomum dentro do Estado? O que é isto senão o esquartejamento do princípio da igualdade, também inscrito na nossa Constituição, caput do artigo 5º:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Mas isto foi um parêntese. Além da óbvia necessidade de se romper a cadeia da corrupção no país, o que se necessita fazer para nos aproximar deste ideal democrático seria dividir mais o poder entre os cidadãos. E para isto a solução é aproximar o representante e os representados.
Uma cidade de um milhão de habitantes deve persistir, mas dividida, para fins políticos, em tantos distritos daquele número pequeno de cidadãos. Os que bastem para que se conheçam uns aos outros. Sim, o seu vizinho, aquele que está próximo. Aquele de quem você conhece a história, conhece a vida.
Ninguém conhece um milhão de pessoas. Ninguém conhece cem mil pessoas. Mas se pode conhecer, razoavelmente bem, digamos, umas vinte mil pessoas.
É este grupo, este distrito, para usar uma terminologia familiar, que deve ter o direito de ter o SEU representante. Com deveres bem definidos em relação ao grupo dos representados. Encaminhar os processos, prestar as informações de interesse público, encaminhar os questionamentos, as críticas, as sugestões, cobrar as respostas, cobrar os esclarecimentos, daquela comunidade. Eleito para uma mandato temporário por aquela comunidade, assessorado por servidores públicos para desempenhar suas funções.
Este é o começo da verdadeira participação dos cidadãos no processo político. É o começo da sua liberdade, como diziam os gregos, aqueles povos que vivem sob a lei alheia, a lei da qual não participaram, são os povos de escravos. A liberdade verdadeira é viver sob a lei que nós mesmos criamos.