Imagine que não existe qualquer Paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum Inferno abaixo de nós
Acima de nós somente o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo para o hoje
Imagine que não existam países
Não é difícil de imaginar
Nada pelo que matar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz
Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu espero que um dia você se junte a nós
E o mundo poderá ser como um
Imagine não haver propriedade
Eu me pergunto se você consegue
Sem necessidade de ganância ou de fome
Uma irmandade de homens
Imagine todas as pessoas
Dividindo todo o mundo
Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Eu espero que um dia você se junte a nós
E o mundo poderá viver como um
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one
Desenvolvendo e ilustrando um tema mencionado na introdução deste trabalho, valho-me da canção de John Lennon como exemplo do pensamento utópico. Na Utopia de Lennon não haveria a divisão religiosa ou patriótica, e com isso se alcançaria a paz. Não haveria propriedade, e assim se eliminaria a ganância e a fome. Não haveria esperanças ou temores com o pós-vida, e assim se aproveitaria melhor o momento.
Uma Utopia ao gosto dos novos tempos. Materialista, identificando no pensamento religioso uma fonte de frustração e angústia. Socialista, como de praxe. E rejeitando sacrifícios em nome de Pátria, Religião, ou qualquer dos nobres e respeitáveis Ideais conservadores.
Chama atenção, também, muito característico do pensamento utópico, a pretensão de que o mundo todo convirja, torne-se Uno, na direção daquilo que o Sonhador avalia como Bom. O mundo sem fome, sem guerra, sem ganância. O Paraíso terreno, enfim. Não mais o Paraíso religioso, fora do mundo.
Note bem: não estou questionando o direito de John Lennon ou qualquer um sonhar Utopias da maneira que desejar. Afinal, eu próprio estou aqui construindo minha Utopia particular. “Imagine” é uma grande canção, inspiradora. Sem a força do Romantismo, da Inspiração, da Poesia, o homem seguiria um primata, repetindo seus padrões instintivos.
Todavia, por indispensável que seja o Sonho, o Ideal, a Poesia, indispensável também é a Razão, o Cálculo, o Argumento. Se você não puder sonhar o Castelo, nenhum Castelo haverá. Mas se você não puder projetar o Castelo, reunir o material, a mão de obra, se você não fizer os cálculos de engenharia, o Castelo só existirá no seu sonho.
Voltemos ao preceito bíblico: “Amai o seu inimigo”. Se você é um homem prático, não despreze os seus poetas. Se você é um poeta, não queira se livrar dos seus homens práticos. Não bata com a porta na cara da cigarra, não a deixe morrer de frio e de fome. A vida sem música é uma vida de bicho. Se bem que nos tempos que mudam a cigarra fechou com uma grande gravadora, e está rindo da formiga, ainda mais afanosa. Não ria da formiga, cigarra. Não a despreze. Amanhã vão fazer cópias piratas dos seus discos, olha você na Rua da Amargura, de novo.
Mas eu falava de Utopias. Note como elas recorrentemente esmagam a Liberdade, promovem a intolerância, ao elegerem um único comportamento como “certo”, aquele sonhado pelo Sonhador, que deseja obrigar o mundo todo a se converter ao seu pensamento superior.
É a arrogância insuportável dos que se sentem divinos, destinados a recriar o mundo e o homem à sua imagem e semelhança. À imagem e semelhança de seus sonhos, de seus ideais.
Elege-se sempre o inimigo, o diferente. Pro careta, o inimigo é o doidão, pro doidão, é o careta. Se o sujeito é religioso, místico, o mal do mundo são os filhos do diabo, ateus e materialistas. Se o sujeito é ateu e materialista, então o mal do mundo é o pensamento religioso e místico, responsável por todas as guerras.
Um legítimo diálogo de surdos, tudo por conta de nossa intolerância.
Vejamos a Utopia de Thomas More, a utopia por excelência, a utopia das utopias. Aliás, “utopia” foi um termo criado por More, significando, etimologicamente, “lugar nenhum”, termo com o qual ele nomeou sua fictícia ilha onde os habitantes levavam uma vida de perfeição. Não se trata de uma obra ingênua, como pode parecer aos que não a leram. O próprio More faz uma crítica arrasadora, irônica, no próprio corpo da obra, quanto à possibilidade de um governo pela razão no mundo dos homens. O que não o impede de tecer uma organização detalhada e criativa para os habitantes de Utopia. Ao fim e ao cabo, a fórmula mágica que abria aos utópicos as Portas do Paraíso: a abolição do dinheiro. O dinheiro, essa raiz de todos os males.
Parece muito simplista, parece muito irrealizável? O próprio More já fez a crítica de sua obra, e fez bem, situando sua ilha em Lugar Nenhum. Trata-se de licença poética, a mesma de que goza John Lennon. Mas nem por isso deixavam de ser importantes a Utopia de More, ou a canção Imagine, de John Lennon. Elas faziam a crítica a aspectos da realidade do seu tempo, abriam as portas para uma mudança, ao idealizarem uma alternativa.
Em contraste às perseguições aos hereges promovidas por uma Igreja Católica tirânica, More concebia para a ilha de Utopia a liberdade de crença religiosa. Menos para os ateus, que deveriam ser eliminados. More não chegou tão longe na liberdade de crença, a ponto de admitir o ateísmo.
Mas não mudou o mundo, em alguma medida, na direção da Utopia de More? Não concebemos hoje, não vivemos hoje, a diversidade religiosa pacífica, em vários lugares? É claro que sujeito a retrocessos, é claro que reconhecendo que em muitos lugares ainda impera o fanatismo, afinal não existe perfeição, mas o importante é que já pudemos experimentar e comprovar que é possível, sim, viver pacificamente entre católicos e protestantes, entre budistas e muçulmanos, entre ateus e pagãos. O mundo não acaba por isso, a sociedade não pega fogo, a vida segue, mais fácil e melhor do que nas épocas em que se devia odiar e matar seu vizinho porque ele não ia à missa contigo.
Também John Lennon, numa época de Guerra Fria, Guerra na Indochina, Guerra pra todo lado, desfraldou uma bandeira de Paz, pediu que se desse uma chance à Paz, atraindo, inclusive, muito ódio e rancor para si, com sua postura, naqueles tempos de histeria. Mas de fato, outros sonhadores se uniram ao sonho, e a paz ganhou uma melhor chance. Hoje em dia parece, para muitos, que se deve insistir e buscar uma solução pacífica. Até mesmo depois de 11 de setembro e governo Bush, e apesar de todos os pesares, não se conseguiu abafar plenamente, nem duradouramente, as vozes críticas aos Falcões da Guerra. E o incrível Muro de Berlim não caiu, e a Cortina de Ferro não se rasgou como papel?
De novo, não podemos nos deixar levar por uma euforia exagerada, os problemas estão aí, os riscos de retrocesso continuam, outros More serão decapitados, outros Lennon baleados. Mas suas Utopias continuarão valendo como inspiração e como crítica aos acomodados.
Ainda que não se possa, claro, atribuir o fim da guerra do Vietnã a John Lennon, ou dizer que a Utopia de More preveniu as ferozes guerras religiosas que sacudiram a Europa após a Reforma Protestante. Mas suas idéias ficaram como semente, ficaram como um guia, a frutificar e inspirar as mentes, que no momento certo promoveriam a mudança.
Permanecem válidas e importantes as utopias, portanto, com suas críticas, o que não impede que também as utopias sejam criticadas. É isto que quero fazer agora, uma crítica das utopias, uma crítica das críticas.
A crítica deste traço, que já destaquei, que é a tendência dos utópicos de acabar com a diversidade,
com a liberdade, ao eleger um único lado como “bom”, ou “certo”.
Leiam na Utopia: com todas as idéias interessantes, desejáveis, que contém, o sentimento que domina, ao final da leitura, é o de uma prisão, na uniformidade imutável de comportamento. Parece uma colméia, um formigueiro, não uma Cidade humana.
O mesmo na canção de Lennon: o mundo poderá ser como um, viver como um. Por que isto seria desejável, se o ser humano é diverso? Querer que ele se conforme num padrão é mutilá-lo, ou esticá-lo, como num leito de Procusto, é cometer uma violência contra os que não se adaptaram àquele ideal. Da religião “certa”, da raça “certa”, da classe social “certa”.
Outro livro fundamental do pensamento utópico, A República, de Platão, contém este gérmen da uniformidade, e sua consequente supressão da liberdade. A Cidade ideal é rigidamente estratificada, em suas castas de governantes, guerreiros, trabalhadores. Um detalhe interessante é a prescrição de banimento dos poetas, já identificados como elementos desestabilizadores do “sistema”, mesmo naquele puro exercício de pensamento. A prática histórica mostrou que de fato, nos regimes totalitários, os poetas, músicos, escritores, jornalistas, e outras fontes de pensamento crítico à ideologia oficial deveriam ser exilados, ou cooptados, ou mortos, ou de qualquer forma silenciados, tendo em vista a preservação do sistema.
De novo, preciso fazer notar que, por mais que me repugne o totalitarismo, e qualquer espécie de justificativa para o totalitarismo, não posso deixar de reconhecer a importância e a excelência do livro A República. Faz parte do meu top ten particular, dos livros que considero mais importantes na minha vida. Acho que naquele momento se afirmava plenamente a capacidade humana de considerar a realidade, criticá-la, e conceber novas formas de vivê-la, no caso, referindo-se à organização política.
Este o elemento mágico, que distingue o homem dos outros animais. Assistam a qualquer documentário sobre elefantes ou gorilas, ou zebras, ou sapos, ou tubarões, baleias, golfinhos, chimpanzés. Assistam: África, a Vida Selvagem. Repare como os ciclos da natureza se repetem, inverno na planície, no verão se deslocar atrás das fontes da água. Ano após ano, eternamente.
Já o homem, este concebe e executa construir um canal, ou construir uma represa de armazenamento. Ou construir uma ferramenta para ir buscar a água.
O homem cria instrumentos, engrenagens, governos. Não é que Platão tivesse inaugurado a maneira de organizar os homens. O grande Sólon, antes dele, também em Atenas, fundava as leis e instituições democráticas, e novas leis, novos desenvolvimentos, se deveram a outros legisladores e administradores memoráveis, Pisístrato, Péricles, afora a multidão dos desenvolvimentos anônimos, cumulativos, que faziam a organização de Atenas.
Em outros lugares, novas organizações eram tentadas, adaptadas a cada circunstância, Licurgo e sua sociedade militarizada em Atenas, os impérios egípcios e mesopotâmicos, e as tribos israelenses...
O homem era o mesmo homem em cada uma dessas circunstâncias, criando suas leis e organizações, trocando experiências, da mesma forma que criavam suas moedas, seus comércios, suas matemáticas, suas astronomias, suas línguas, suas escritas... um processo principalmente inconsciente, anônimo, cumulativo, como o processo de criação de leis, adaptado a cada circunstância, aproveitando experiências alheias.
Mas com Platão, talvez pela primeira vez na tradição ocidental, o pensamento político se apresentava sob um enfoque sistemático, filosófico, em que pela argumentação, pela dialética, se buscava uma forma idealizada, perfeita, de organização da pólis. A unidade política, o governo da Cidade-Estado.
Esta foi a incrível contribuição para o pensamento, consubstanciada na forma de um livro, um delicioso livro, tendo Sócrates por personagem-protagonista, em que se afirma a capacidade humana de refletir sobre o Estado, e descobrir a melhor maneira de organizá-lo. Não precisamos aceitar passivamente as leis que temos, não precisamos suportar o jugo do governante da hora. Podemos nós mesmos discutir, e encontrar um melhor caminho.
Este o grande legado d´A República, além das inspiradíssimas passagens em que se discute a ponderação, o equilíbrio, a Justiça (na verdade, a discussão no livro principia como uma investigação sobre o que seria a Justiça. A discussão sobre a organização do Estado ideal ocorre por uma proposta de Sócrates, que alega que discutir sobre a Justiça na organização de um Estado tornaria mais fácil enxergar a Justiça na organização de um indivíduo, por uma questão de escala, sendo a Justiça uma coisa só, nos dois casos). Lemos na República, também, o famoso mito da Caverna, e uma história sobre um sujeito que conseguiu um anel que lhe fazia ficar invisível, podendo dar livre curso às suas ambições, sem correr o risco de enfrentar punição.
Com todo o imenso prazer que este livro formidável proporciona, com toda a sua imensa contribuição, não é o caso, claro, de tomá-lo por guia na hora de se pensar um Estado. Talvez o próprio Platão alimentasse a esperança de implantar sua República, tal qual a descreve em seu livro, entusiasmado com a própria genialidade de seu pensamento, e do pensamento de seu Mestre, Sócrates, tão formidável, tão preciso.
Acresce que ainda tinha a força da novidade. Um pensamento sistemático, comparativo, argumentativo, sobre a política, ainda não havia sido testado. Parecia não haver limites para seu alcance. Ah, nada como o Reino das Idéias, o Reino das Matemáticas, a roda dos discípulos na Academia, para dar livres asas à imaginação, e tudo parecer possível!
Mas o mundo do Real está sempre aí, e é tão difícil transformar uma Idéia em Realidade! Olho para este texto que escrevo: quando acordei pela manhã ele parecia tão pronto em minha mente, e tão mais inspirado! Agora já estou há horas batalhando, e cada vez ela se perde mais, aquela chama do pensamento puro, nas digressões, nos descaminhos, nas interrupções, na falta da palavra certa!
Tanto se perde, e olha que é só um texto, não é uma Lei para uma Cidade! Mas se não houver essa passagem para a Realidade, imperfeita como é, então não é nada, não serve pra nada. E no meio da luta, no meio do trabalho, no meio da imperfeição que é lidar com o real, é que se pode alcançar algo de interessante, e que pode até surpreender, pois não tinha sido adivinhado, quando era só pensamento.
Mas falava de Platão, e ele realmente tentou concretizar seu pensamento no governo de uma cidade, ensinando sua filosofia aos príncipes, ou sendo ele próprio o príncipe-filósofo. Como sói acontecer, nessas situações, em pouco tempo Platão se desincompatibilizou com os governantes locais, no caso, os Dionísios, pai e filho, tiranos de Siracusa, tendo de picar a mula para evitar coisa pior.
Outro grande intelectual que não deu sorte no desempenho das funções públicas, este na tradição oriental, foi Confúcio (séc. VI a. C.). Não importa. Nos dois casos, seu legado não foi a prática do que fizeram, mas seu pensamento, que sobreviveu e inspirou mudanças no modo de se organizar politicamente.
Afinal, hoje, temos em nosso patrimônio certas idéias, certas práticas, certas instituições, certas leis, que representaram efetivos avanços ao nos proporcionar maior segurança e bem-estar. Temos os Tribunais, os advogados, as leis, para resolver nossos conflitos, e nos proteger inclusive do arbítrio do Soberano, temos serviços públicos, temos o voto para escolhermos nossos representantes, temos o Poder dividido em suas funções... tudo isso, claro, fruto do pensamento humano, que comparou, criticou, concebeu, e implantou cada uma dessas mudanças, com muitos sacrifícios, e com muito trabalho.
Claro, também, tudo isso imperfeito, como imperfeito é o ser humano. Mas pense na alternativa, pense em não ter nada disso, como foi realidade, durante muito tempo de nossa História, e como continua sendo em muitos lugares. Pense em não ter a quem recorrer, quando expurgado de seu patrimônio, de sua liberdade, de sua vida, pelo arbítrio do Soberano. Pense em não poder votar, não poder manifestar seu pensamento, não poder fechar em segurança um contrato. A imperfeição é apenas um estímulo para que se busque melhorar continuamente, e não para desmerecer o que já se conquistou.
Celebremos, portanto, nossos utópicos e suas utopias. Mas não dogmaticamente, não acriticamente, não irrefletidamente. Talvez muito da ressaca que temos hoje com as utopias se deva a que elas foram implantadas a ferro e fogo recentemente, por fanáticos, sem que suas promessas de perfeição terrena tenham sido cumpridas.
Saíram do seu terreno, o terreno poético, inspirador, ideal, para tentar obrigar a realidade a se conformar com suas propostas pré-moldadas. Foi a tal pretensão cientificista, que empolgou os corações e mentes durante o século XIX e XX.
O grande progresso técnico, as grandes invenções que maravilhavam o ser humano durante todo este período, que a maioria não podia sequer explicar, fundamentavam uma fé irracional, mística, na ciência. A televisão, o automóvel, a luz elétrica, o avião, o foguete, o rádio, o cinema... e as cirurgias, e o raio laser...
Tudo podia ser conseguido, tudo podia ser explicado, apelando-se tão somente para a ciência. Novos campos poderiam ser explorados, utilizando-se dos métodos e instrumentos que tão bons resultados alcançaram, no terreno da tecnologia. A psicologia curaria os sofrimentos do indivíduo, a sociologia curaria os sofrimentos da sociedade. Uma nova era de ouro seria alcançada, com fartura e bem-estar para todos! O Paraíso reconquistado, aqui mesmo, nesse Vale de Lágrimas!
Hoje, depois que a ciência demonstrou seu poder de destruição em duas grandes guerras terríveis, depois que a Alemanha nazista se valeu de avançadas técnicas para praticar o extermínio em massa, depois que o átomo foi partido sobre Hiroshima e Nagasaki, depois que os experimentos sociais e econômicos redundaram em outros tantos milhões de vítimas na União Soviética, na China, no Camboja, e em outros cantos, depois que continuamos com as mesmas angústias, as mesmas frustrações, as mesmas carências, mesmo nos Estados que são os “maiores” do mundo, a fé absoluta na ciência parece abalada...
Não que se vá retornar à idade da pedra lascada, não é isso. Mas é bom, é saudável, que não abdiquemos mais do espírito crítico, para sair numa corrida cega em direção ao que se pode revelar um abismo.
Às utopias fez muito mal esta febre cientificista. O tal “socialismo científico” garantia que reformaria a sociedade e o homem, com as bases da mais pura ciência. E qual era a tal receita “científica”, inspirada na descoberta então recente da evolução natural, por Charles Darwin? Ah, o fim da História, com a tomada do poder pelo proletariado, que encerraria a luta das classes. E como, ou por que, se encerraria a luta de classes, se ela sempre esteve presente na História do homem, segundo a lição do Mestre Marx? Ah, sim, pela abolição da propriedade privada dos meios de produção. Que simples, que científico! Parece a abolição do dinheiro do More. Mas o que era poesia, então, o que era exercício de pensamento, subitamente adquiriu realidade, e uma realidade violenta, brutal, quando subiu ao poder na Rússia o grupo dos bolcheviques, fanáticos dispostos a usar a sociedade russa como cobaia para seus experimentos utópicos.
Era uma sociedade já acostumada a sofrer sob o jugo de tiranos absolutos. Os czares, influenciados pelo domínio mongol suportado nos anos iniciais do desenvolvimento do Estado russo, empregaram os mesmos métodos despóticos sobre sua população. Que o diga Ivan, o Terrível. O chamado despotismo oriental. Mas, ao mesmo tempo, a Rússia tinha os olhos voltados para a Europa, onde se desenvolviam as nações modernas. O papel dos czares, então, foi o de promover uma modernização acelerada da Rússia, num parto a fórceps. Pedro, o Grande, foi o monarca emblemático, impondo que aos conservadores camponeses russos que raspassem suas barbas, construindo portos e embelezando São Petersburgo, às custas do trabalho forçado, e deportação, de milhares de servos. A Rússia aumentava seu poderio, europeizava-se, mas na superfície. Não basta raspar uma barba para transformar um velho camponês russo num moderno europeu citadino. No fundo, permanecia a velha força bruta aplicada pelo governante sobre a massa de servos, ainda presos à terra, num regime feudal, que só cairia, formalmente, em 1861.
Quando chegou a hora de enfrentar o teste da realidade, a Rússia se viu inapelavelmente ultrapassada pelas outras potências industriais. Primeiro, a humilhação da derrota para o Japão, em 1905. Depois, o desastre da Primeira Guerra Mundial. A Rússia estava pronta pra trocar de senhores, sairia aquele que a lembrava da derrota, do atraso, da humilhação, para entrar os que lhe prometiam um rompimento definitivo com todo aquele passado de Igreja e de nobreza, para poder ingressar, finalmente, no que lhes parecia o supra-sumo da modernidade: a filosofia marxista, o Fim da História. Conforme o pensamento de seus intelectuais, compensatório de um sentimento de inferioridade, a Rússia seguiria liderando entre as nações: não mais devido à fé ortodoxa, destinada a preservar o “verdadeiro” cristianismo da corrupção do Ocidente; mas, agora, devido à fé marxista, Farol destinado a iluminar o caminho da Humanidade...
E tome modernização a fórceps, tome deportação, desapropriação e trabalhos forçados... nada de muito diferente, desde o czar Pedro, passando por Lenin e Stalin. Talvez um novo fôlego, com a substituição das lideranças e da ideologia oficial, para as velhas práticas despóticas. Um período de forte desorganização econômica, depois de uns experimentos desastrosos inspirados por uns marxistas ortodoxos, seguido de uma fome devastadora, e de guerra entre vermelhos e brancos, e o sistema se reorganizou sobre suas velhas bases conhecidas: domínio único e inquestionável do soberano, e a bem da verdade o partido bolchevique, sob a liderança de Lenin, foi o mais decidido a empunhar as rédeas do poder, perseguindo e executando milhares de opositores; e exploração total e completa dos “servos”, convocados para realizar os altos desígnios do Estado, confundido com a figura de seu líder supremo.
A estabilidade do regime sob esta linha de submissão total da vontade do indivíduo à vontade do soberano, mesmo a um custo incalculável em termos de vidas dos seus súditos, foi o bastante para fazer a Rússia voltar aos trilhos de seu desenvolvimento. A Rússia já era um Estado de imensos recursos, imensos potenciais humanos. Logo retornou à sua tradição de incorporar as nações à sua volta, sob a sua liderança, formando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Parecia que tudo precisava mudar, para que tudo permanecesse o mesmo. O período de anarquia, provocado por uma guerra desastrosa, e por uma liderança fraca do czar, fora suplantado por uma ditadura absoluta, a mais completa que o mundo moderno já vira. O apogeu chegou ao final da segunda guerra mundial, quando o Paizinho Stalin levou os russos à desforra sobre a Alemanha, estendendo seu império até o meio de Berlim.
A Santa Rússia cumpria sua missão de espalhar o Evangelho da nova fé. Mas teria sido realizado realmente este ideal utópico de fim da exploração do homem pelo homem, comunismo, Reino de Paz sobre a Terra?
Descontando a opinião de alguns fanáticos, principalmente aqueles que viam o Império Soviético bem de longe, tudo que se via eram os velhos padrões de exploração de alguns povos mais fracos por um povo mais forte, e a exploração dos próprios súditos russos pelo seu governo. Tudo que se via eram as velhas práticas despóticas, tiranas, julgamentos manipulados, expurgos em massa, deportações pra Sibéria, intelectuais perseguidos, castas de privilegiados, etc. etc.
As idéias de Marx ganharam grande projeção, por terem sido invocadas como justificação para este regime que representava, na imaginação dos utópicos do mundo, a esperança de finalmente exercerem o poder neste mundo. Professores, artistas, escritores, guarda-livros, sentiam-se exaltados, porque lhes parecia que aquelas crenças que partilhavam, como as de uma seita, finalmente conquistavam os cargos de comando, e em breve se imporiam a todo o mundo.
O filósofo político italiano, Antonio Gramsci, percebeu bem isso. A nova fé atendia a esta clientela, a inteligentsia, que almejava conquistar e manter o poder.
Ah, como o poder seduz e ilude... aqueles homens e mulheres podiam jurar que faziam tudo “por um mundo melhor”, quando no fundo batalhavam todos os dias por um mundo em que o exercício do poder estaria concentrado em suas mãos merecedoras, as mãos dos Iluminados, daqueles que sabem o que é melhor para o povo...
Os soviéticos continuavam sem direitos, sem liberdades, sem poder votar, sem poder tocar um negócio, sem poder sair do país, sem poder mudar de emprego, sem poder criticar o Governo? Ah, mas os professores de marxismo estavam com uma vida bem boa...
E foi assim que o pensamento utópico se desmoralizou totalmente. Quando passou da poesia para a ciência, e desta para a prática de governo, onde é que foram parar os tais jardins floridos para o homem? Que Éden aproveitava ao pobre diabo preso num Gulag, passando frio e fome na Sibéria? Ou numa vida sem direitos, sem esperanças, e sem poder protestar? Que raio de utopia era essa?
Ah, sim, eles deviam ter de sofrer, porque eram infiéis da nova crença. Eram apóstatas, ou hereges. Assim justificavam os padres do novo sistema. Mas, então, deu-se tantas voltas pra se voltar à Idade Média? À Igreja triunfante e perseguidora de dissidências?
Não se pode culpar Marx por tanta besteira que se fez em seu nome. Mas o fato é que suas idéias de abolição da propriedade privada dos meios de produção, e de luta de classes, forneceu o álibi para que os dirigentes políticos na Rússia concentrassem todo o poder econômico nas mãos do Estado, perseguindo e eliminando os opositores. Uma economia planificada e centralizada, muito ineficiente e corrupta.
Os imensos sacrifícios do povo russo, de fato empenhado em superar os traumas da derrota humilhante na Primeira Guerra, aliado aos imensos recursos do país (o mais extenso do mundo), permitiram que houvesse um desenvolvimento extraordinário do Estado, uma vez que as técnicas modernas eram empregadas na produção industrial. O Estado soviético se tornou uma potência militar, anexou os vizinhos mais fracos, dominou politicamente metade da Europa, explodiu sua bomba nuclear, lançou o primeiro satélite, colocou o primeiro astronauta em órbita, alcançou altos índices de industrialização, alfabetizou sua população...
Algumas conquistas importantes, outras inúteis, ou injustas, que não redundaram em melhoria na condição de vida da população, vivendo sob um regime de terror e penúria. Onde estava a tal utopia? Onde estava a liberdade da opressão do homem sobre o homem?
Em 1991, surpreendentemente, o Império soviético se esvaneceu no ar, e todo aquele sacrifício de vidas pareceu tão sem sentido. Todos aqueles livros de exaltação de repente cheiravam a mofo, todos aqueles professores ficaram sem assunto, todos aqueles políticos, todos aqueles partidos, sem justificativa. Toda aquela energia empenhada em sustentar aquela grande utopia, um desperdício.
De repente, todas as utopias passaram a ser vistas com suspeita. E a balança desequilibrou-se novamente, de uma crença ingênua para um ceticismo excessivo, de um erro para outro.
Os novos tempos pensavam que conceber e defender utopias era um exercício inútil, quando não pernicioso. Mais valia aceitar o mundo do jeitinho que é dado, e lutar pelo próprio interesse. Basicamente, ter mais do que o vizinho.
Para quem está muito confortável nesta situação, para os donos do poder, pode ser muito conveniente que não se fale mais em mudança. Mas como os problemas e as injustiças continuam por aí, e podem se agravar enquanto não são combatidos, seria melhor pra nossa atormentada espécie arregaçar as mangas e dar tratos à bola.
Na busca de um equilíbrio, sem se empolgar com soluções simplistas e que excluam boa parte da humanidade do horizonte, mas também sem renunciar à busca de um novo ideal para o tempo, que represente algum avanço no sentido de proporcionar paz e bem estar para cada um de nós.
Voltando à República, de Platão, para exemplificar, podemos admirar e nos inspirar com o pensamento elevado que propõe a crítica e a transformação. Mas não precisamos idolatrar o livro ou o autor, por elevados que sejam, e procurar impô-los como um dogma à realidade. Lembremos, a propósito, o que diz o escritor Irving Stone a respeito da idéia de Platão de fazer com que os reis-filósofos se encarreguem da educação das crianças, com menos de dez anos, “subtraindo-lhes os costumes dos pais e educando-as segundo seus próprios costumes e leis”. Stone comenta: “Só mesmo um solteirão como Platão, que nunca na vida trocou uma fralda, poderia levar a sério uma proposta dessas”.
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