
A Vida dos Outros é um filme exemplar ao mostrar o inferno do totalitarismo na Alemanha Oriental, anterior à queda do muro de Berlim, em 1989. algo ocorrido tão próximo, no tempo, no lugar. Homens civilizados, pelo menos de fraque e de gravata, e manejando instrumentos, e desempenhando seus cargos burocráticos na terrível polícia secreta, Stasi, e desempenhando cenas de imposição de poder tão primitivas.
Primitivas, mas perfeitamente adaptadas àquele meio, aquele pântano. Ali o chefe da polícia secreta tinha espaço para desenfrear a besta em seu coração. É questão de tempo, num ambiente que oferece esta oportunidade, até que alguém capaz de aproveitar esta oportunidade galgue ao seu posto. E daí, quanto estrago na vida dos pobres mortais que dêem o azar de cruzar seu caminho! Pode ser um intelectualzinho, com boas relações na mídia. O sistema pode aturar estes intelectuais. Azar vai ser se ele tiver uma amante que é cobiçada pelo chefão do poder de verdade... aí, ele vai ser trucidado como um gravetinho no furacão, e suas boas relações não lhe servirão para nada.
No filme também tem a figura do intelectual íntegro, que vai questionar de frente, mas que também acabará trucidado pela brutalidade do sistema. Mas este é uma personagem secundária do filme.
A principal era este intelectual, festejado, mas que ainda acreditava, convenientemente, em ser possível operar junto com aquele sistema. A sua amante, uma atriz de teatro. O chefe da Stasi, que se decide a tê-la, de qualquer forma. E um espião, que seguia fielmente, meticulosamente, como uma engrenagem daquele sistema, sem se questionar, até que é designado para esta tarefa imoral, injustificável, e comece a se interessar por aquelas vidas que ele está contribuindo para destruir, porque o chefe mandou, e porque é assim que as coisas são.
O filme é bem construído na sua história, e não poupa a tragédia de seus personagens. Mas atinge também este momento histórico, tão formidável, em que de um dia para o outro tudo havia mudado, tudo que era sólido se desfazendo no ar... toda aquela imensa estrutura montada, todos aqueles livros escritos para justificar, e tantas vidas encaixadas, para manter aquela farsa de novo modelo para o homem, e guerra Socialismo x Capitalismo, Oriente contra Ocidente, toda esta baboseira.
O filme fala do chefe de Polícia da Stasi. Poderia falar de Stalin. Stalin não ascendeu ao poder supremo, destroçando, literalmente, seus adversários? Não mandou botar uma picareta na cabeça de Trotski, isso com Trotski exilado no México há muitos anos? Não passou por cima de incontáveis vidas em seus expurgos? Em suas deportações para a Sibéria? Em seus julgamentos de mentira, em suas execuções de verdade?
É, era o “Paizinho do povo”, conforme sua propaganda dizia, conforme intelectuais a soldo repetiam pelo mundo. Para um novo mundo melhor, para uma vitória do socialismo.
Pois em 1989, 46 anos depois da morte do Paizinho do Povo, depois de incontáveis vidas sacrificadas, o pesadelo simplesmente acabou, o inverno derreteu, a cortina de ferro rasgou... não com uma explosão, mas com um suspiro.
Eu nasci em 1973. Cresci ouvindo esse lero romântico, esses loas a Lenin, a Fidel, a Che Guevara... eu engoli essa história toda, também eu cultivei meu pôster de Che Guevara. Mas eu fiz a crítica de tudo isso, porque eu não parei de ler os livros de História. E me impressiona como tudo aconteceu rápido, como tantos livros que eu vejo nos sebos, e que eu me lembro de serem sucessos da minha adolescência, pelo menos no tom que compartilhavam, como tudo isso parece tão velho, de repente, como pergaminhos do antigo Egito. Era Nelson Rodrigues que lembrava dos costumes do início do século, e como tudo aquilo, fraques e cartolas, parecia tão rapidamente envelhecido!
Realmente, a História correu. Muito embora, evidentemente, trate-se sempre do mesmo homenzinho, tão perdido no tempo, talvez agora ainda mais, quando tudo corre tão rápido. O campo virou cidade, a enxada virou computador, quando não virou metralhadora.
Mas talvez essa mesma velocidade traga uma lição, de não confiar a vida a falsos ídolos. Vale a pena matar e morrer por estes nomes no vazio, estas mágicas que alguns manipuladores espertalhões manejam tão bem, em proveito próprio? Ah, sim, tem sempre alguém ganhando muito dinheiro, e muito poder, com cada papo furado desses, pátria, nação, raça, moral, deus, socialismo... sempre arranjando uns adeptos dispostos a se aglutinar nos seus bandos, e repartir os despojos conseguidos na defesa destes nobres ideais!
Velhas armadilhas.
Cotação: 5 estrelas (excelente)
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