sábado, 4 de dezembro de 2010

Oréstia



“Guiou-lhe os passos a filha de Zeus

que nós, mortais, costumamos chamar

pelo nome que lhe convém – Justiça;

sobre seus inimigos ela insufla

vingança e morte até aniquilá-los”


- Ésquilo, Coéforas



Estou lendo A Oréstia, trilogia das mais antigas peças teatrais do mundo, do mais antigo dramaturgo de que conhecemos obras completas: o grego Ésquilo (c.525 – 456 a.C.).


A Oréstia compõe-se das peças Agamenon, As Coéforas e As Benevolentes. Trata-se de mitos antigos de pecados gravíssimos, maldições, tragédias familiares recorrentes, culpa, retribuição. Conclui a trilogia o momento mítico em que a Justiça se organiza entre os homens, que passam a impor seus valores através de um tribunal e de um processo, cujo júri são os pares, os próprios homens, mas cuja inspiração é divina. Na peça As Benevolentes, o veredito que o júri de atenienses dá termina empatado, três pra cada lado, e é a própria Palas Atenas, a Divina Inteligência, instituidora daquele tribunal, que dará o voto de desempate, pela absolvição.


As tragédias se baseiam em mitos antigos. A saga familiar dos Pelópidas. Pelops é o herói epônimo do Peloponeso. Ele chegou àquela península determinado a se casar com a filha do soberano local. Consegue, através de ardil, ajudado por um servo do rei, a quem trai e assassina. Este servo, antes de expirar, amaldiçoa Pelops e sua família.


Os filhos gêmeos de Pelops, Atreu e Tiestes, disputam pelo trono. Tiestes seduz a esposa de Atreu para que ela o ajude a arrebatar o trono, roubando um carneiro de lã de ouro que asseguraria a conquista do trono. Atreu, protegido por Zeus, foi proclamado rei mesmo assim. Vingou-se de Tiestes, de forma terrível, simulando uma reconciliação, e fazendo o irmão comer enganado a carne de três de seus filhos. Ao sabê-lo, Tiestes amaldiçoou Atreu e sua geração.


Os filhos de Atreu eram Menelau e Agamenon. Menelau, rei de Esparta, foi o que teve a esposa, Helena, arrebatada por seu hóspede, Páris, acarretando a guerra de Tróia.


Mas Agamenon, rei de Argos, foi o mais amaldiçoado: sacrificou a própria filha, Ifigênia, para conseguir ventos favoráveis à expedição dos gregos contra Tróia. Agamenon era o comandante-supremo entre os gregos.


Ao retornar de Tróia, sua esposa Clitemnestra o levou a uma armadilha, e o apunhalou juntamente com o amante, Egisto, filho sobrevivente de Tiestes. Esta é a ação da primeira peça da trilogia, Agamenon.


Na segunda, Coéforas, vemos o filho de Agamenon, Orestes, retornando a Argos, e junto com sua irmã, Electra, combinarem o assassinato de Egisto e de sua mãe, como vingança pela morte do pai.


Orestes executa a ação sanguinária, e termina a peça ameaçado pelas Fúrias Vingadoras, as Erínias, ou as Cadelas, deusas antiquíssimas, personificação do remorso, que exigem retribuição para os crimes de sangue entre familiares.


Na última peça da trilogia, As Benevolentes, vemos as Fúrias que perseguem Orestes até Atenas, onde Orestes pede a proteção da deusa que dá nome à cidade. Esta convence as Fúrias a submeter Orestes a julgamento, dos seis mais distinguidos cidadãos de Atenas.


Como dito, o julgamento termina empatado, com Atenas dando o voto de Minerva (nome romano da deusa) a favor da absolvição do acusado.


Atenas proclama que o tribunal fica instituído para sempre, por ela. As Fúrias, irritadas com o resultado, ameaçam trazer a ruína de toda a região. Mas Atenas, mediante promessa de honrarias eternas às Fúrias, consegue apaziguá-las, quando elas então trocam seu nome, de Erínias (Fúrias, em grego), para Eumênides (Benevolentes). Atena lhes proporciona um santuário, na colina de Ares (o Areópago, que deu nome ao tribunal ateniense).


Na mesma época em que Ésquilo escrevia suas peças, e as encenava em Atenas, esta cidade experimentava os momentos de apogeu de seu regime de governo democrático. Os cidadão discutiam suas leis, escolhiam seus governantes, julgavam seus processos. Sentiam-se livres, sentiam-se orgulhosos dessa sua condição frente a outros povos, destituídos de direitos frente a seus governantes.


Os egípcios tinham seu Faraó divinizado, sua casta de sacerdotes. O mesmo acontecia com os Persas, subjugados por suas dinastias reais de guerreiros.


Mas os atenienses estavam exercendo seu próprio governo, uma das primeiras manifestações na História da Humanidade, da divisão do poder, da democracia. Uma demonstração, ademais, que dava seus frutos na forma de instituições, de tribunais, de leis, de processos, de votos, de oratória, de praça pública...


E, submetidos ao teste mortal da guerra, os cidadãos livres de Atenas acabavam de resistir e expulsar a maior força armada que aqueles tempos conheceram, o imenso exército e a imensa frota dos Persas, comandados por Ataxerxes.


Ésquilo, que lutara em batalhas contra os Persas, exaltava aquele sentimento de vitória. Um dos momentos em que a Inteligência dos homens se abria. Eles eram capazes, sim, de se governarem, de escolherem, de guerrearem. Eles podiam até alcançar um predomínio mundial fazendo isso.


E era sublime, ser o pioneiro, desbravador dessa seara. Os gregos estudavam juntos (os homens livres, fique claro), aprendendo a ler com os poemas de Homero, desde o século VIII a.C. Discutiam filosofia, descobriam teoremas da matemática. Viviam num regime bastante igualitário, entre estes cidadãos. Não havia grandes proprietários, a própria pobreza da terra não permitia isto. Muitos se dedicavam também aos trabalhos no mar, com suas muitas ilhas, sua costa acidentada. Empreendimentos coletivos, de comércio, de pirataria. A agilidade mental das viagens, dos perigos.

Treinavam em ginásios, desenvolviam técnicas de luta conjunta, a famosa falange. Algo como um tanque de guerra, numa época de ataques desordenados.


Estes eram os gregos, uma das gloriosas raízes da nossa cultura ocidental. A outra seria o judaísmo.


E as peças de Ésquilo falam justamente desta passagem, de um tempo bárbaro, furioso, para um tempo de Justiça, benevolente. A Justiça veio instituir seu tribunal entre os homens, trazida pela deusa da Inteligência. Só poderia vir num lugar em que homens livres fizessem seus julgamentos, aplicassem seus valores. Mas o voto de Minerva faz lembrar que a inspiração era divina.


Temos sorte de ter uma bem cuidada tradução da Oréstia, por Mário da Gama Kury, numa edição da Jorge Zahar Editor.


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