
Lembrei deste romance do norte americano Herman Melville (1819 – 1891), por ocasião das notícias referentes à recente crise econômica dos EUA.
É certo que este romance firmou-se como um clássico das letras estadunidenses. Para que um livro atinja este status, ele deve refletir um pouco o caráter do povo que o adota como clássico.
Trata-se, por certo, de um romance de aventuras, envolvendo a dura e romântica profissão dos baleeiros. Mas é também algo mais, o romance de uma obsessão, envolvendo o Capitão do navio Pequod, Ahab, e a baleia branca que ele jurou destruir, depois que ela lhe arrancou uma perna.
Sei que Moby Dick já recebeu diversas interpretações, o que é natural para uma obra de arte. Este paralelo que pretendo traçar com a economia dos EUA não exclui, por certo, outras abordagens do romance. É apenas uma das formas de utilizá-lo como um guia para a alma dos EUA, aqui sob a perspectiva econômica.
Ahab, como dito, é o Capitão de um baleeiro, o Pequod. É o seu meio de vida, o seu ganha-pão, negociar o precioso âmbar que as baleias trazem dentro de seus corpos. Mas numa de suas expedições, defrontando-se com Moby Dick, imensa e selvagem baleia branca, perdeu uma das pernas, que substituiu por uma perna de pau.
Inconformado, Ahab monta uma nova expedição baleeira, com o propósito de vingar-se da fera dos mares. Com seu caráter inflexível, impõe à tripulação seu objetivo, arrostando tempestades, motins, presságios, e o que mais se interpusesse entre ele e seu objetivo. Não havia força humana, ou dos elementos, ou divina, que pudesse demover Ahab de sua caçada implacável, que termina com a morte de Moby Dick, mas também com a morte do próprio Ahab, preso ao corpo da baleia pela corda do arpão, homem e baleia entrelaçados num abraço mortal, afundando juntos, numa cena inesquecível.
Também o Pequod havia sido colocado a pique pelo gigante ferido, enfurecido, e o único sobrevivente do naufrágio, resgatado por outro navio, é o narrador do livro, Ismael.
E como podemos relacionar este enredo à crise econômica enfrentada pelos EUA?
Podemos começar por lembrar que os EUA se fundaram sob o signo da ética protestante, calvinista, relacionando o sucesso material deste mundo como um sinal visível de predestinação à Salvação. Max Weber, na famosa obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (1904), relaciona o rápido progresso dos EUA, e o seu desenvolvimento capitalista, a esta ética protestante, terreno propício para que as instituições capitalistas vicejassem.
Ética pessoal, respeito a contratos, uma vida de trabalho e de parcimônia, empreendedorismo, independência. Tudo isto, numa terra rica e aberta à exploração, como a América do Norte, resultou num desenvolvimento acelerado que surpreendeu o mundo: em menos de 200 anos, considerada a proclamação da independência das treze colônias (1776), e o fim da segunda guerra mundial, os EUA apareciam como primeira nação do mundo, a mais influente e poderosa em termos econômicos, militares, culturais.
Mas não há Paraíso sem uma serpente dentro. O outro lado do sonho americano era a obsessão com o sucesso. Em breve descobririam que a falta de escrúpulos podia ser muito útil para amealhar grandes fortunas. Depois, tudo bem consolidado, podia-se fazer doações generosas para a caridade. Mas, primeiro, chegar lá. Não ser um perdedor (looser), esse mal supremo, esse sinal visível da danação eterna, merecedor de opróbrio e desprezo.
As Artes norte-americanas produziram algumas grandes obras sobre a falência deste “sonho americano”. Tome-se a peça “A morte do caxeiro-viajante”, de Arthur Miller, como exemplo.
Também a juventude americana teve sua reação de rebeldia e protesto contra aquele materialismo, desde os beatniks dos anos 50, passando pelos hippies dos 60. Mas breve a maconha e o ácido para “expandir consciências”, e para “protestar contra os valores dos pais” daria lugar à cocaína para curtir as noites frenéticas das discotecas, anos 70, e daí aos yuppies dos 80, e se manteria assim, prosperidade criada pelas novas tecnologias de informática, cada vez mais difundidas, e vitória na Guerra Fria com o desmantelamento da União Soviética (1991).
O american way of life parecia imbatível, parecia que havia sido atingido o “fim da História”, o neo-liberalismo vitorioso, Ronald Reagan, Margareth Thatcher, e podia-se descansar sobre os louros da vitória.
A juventude americana consumia-se no vazio hedonista. Nenhuma missão, nenhuma guerra a ser vencida, apenas festas, sexo, drogas, cinema, consumismo... uma alienação perigosa, em que vida e morte perdiam sentido. Veja-se, a propósito, o ótimo filme, baseado em uma história real, Alpha Dog.
O sonho (pesadelo?) de fim da História sofreu um despertar abrupto no 11.09.2001, em que os americanos descobriram, surpresos, que uma grande parte do mundo podia não estar participando da Grande Festa, e podia nem querer participar. Podia estar disposta a trocar sua vida por uma causa, e essa causa podia ser provocar dor e medo nos muito confortáveis.
Seguiu-se uma guerra contra um inimigo difuso (o Terror?), e toda aquela potência nuclear em que se apoiavam os americanos de repente não parecia fornecer segurança. Ocupou-se o Afeganistão, ocupou-se o Iraque. Mas a guerra não tinha fim. Veio a suspeita de que outros interesses podiam estar manipulando a nação, grana preta, petróleo.
E chegando ao fim da primeira década do novo milênio, a grande crise econômica de 2008-2009. Será que os EUA já não possuem mais este predomínio todo, nem militarmente, nem economicamente? Primeiro foram os terroristas islâmicos que o colocaram em xeque. Agora, é a economia chinesa, na guerra cambial. A crise dos EUA se prolonga, a mudança anunciada por Barack Obama (um presidente negro!), não se realiza...
E aqui retomamos o paralelo entre a crise econômica dos EUA e a trágica história do Capitão Ahab: pensemos os EUA da crise como o velho Capitão, após perder sua perna. Moby Dick é o monstro da economia, é onde os EUA, e todos nós, ganhamos o pão, vendendo o âmbar das baleias, mas sujeitos às reviravoltas imprevisíveis, sujeitos a termos uma perna arrancada, ou a vida perdida.
Ahab, os EUA, sofreram um revés na sua vida econômica. São os fracassados, aleijados, perdedores, loosers. Tudo ia muito bem, a pesca das baleias trazia bons lucros, os Senhores do Mundo viviam vidas de Reis: gastando muito, consumindo bastante. Não importava que se afundassem em dívidas. Não eram os Senhores do Mundo? E não podiam ser vistos como loosers, pela vizinhança. E vamos trocar de carro, e vamos trocar de casa. As dívidas migravam de um banco pro outro, com os novos truques contábeis. Todo mundo estava sempre no azul, e vamos manter a euforia consumista, como um bêbado que bebe mais.
Só que aí veio a reviravolta, e a ilusão se desfez, e a bolha explodiu, e a perna foi arrancada. Como a pesca das baleias, conduzindo à extinção da espécie, as mágicas contábeis também não se mostravam sustentáveis. A vida não podia ser consumo sem fim, e ostentação, e zero de produção, zero de trabalho.
Mas como reage o norte-americano, como reage Ahab? Reage emocionalmente, como prisioneiro de uma obsessão, reage para vingar-se, para deixar de ser looser, custe o que custar.
Para conseguir mais petróleo, pra manter os dois, três, quatro carros da família em movimento, vai à guerra. Para salvar bancos irresponsáveis, faz jorrar dinheiro na economia. E os executivos destes mesmos bancos, os agentes do mercado financeiro, que já se tinham mimoseado com bônus e mais bônus por suas mágicas contábeis fajutas, vão a Washington pedir mais dinheiro do Governo, pra cobrir os rombos deixados pela farra, e fazem a viagem em seus jatinhos particulares...
Deixa pros outros serem loosers, perderem a casa, perderem o emprego... nós continuaremos gastando, e caçando a baleia, até que o mundo inteiro naufrague, e nós mesmos sejamos arrastados para o fundo, amarrados à economia que conseguimos destruir, com nossas ações insensatas...
Querem um exemplo? A maior economia do mundo, com seu PIB de 14 trilhões de dólares, não se decidiu a dar uma assistência médica mínima a seus membros infortunados. É dura a vida do perdedor... ainda mais quando se junta o moralismo hipócrita, e atribui os males da miséria aos próprios miseráveis: “alguma ele fez pra não merecer o Paraíso... ou teve muitos filhos, ou não foi previdente, ou se entregou à cachaça... obra do demônio.”
Muito conveniente pra quem não quer se envolver, e só quer saber de proteger muito zelosamente aquelezinho SEU... só que se os ventos da mudança soprarem, e o castelo de cartas desabar, pediriam muito angustiados que se poupasse a vida de seus filhinhos... e o Obama, que tentou organizar este pequeno sonho que tinha, de uma Rede de Saúde universal, amargou uma tremenda resistência política, e um tremendo desgaste, nas picuinhas da Grande Nação para evitar de dar um pouquinho pros seus filhos... Oh, Terra da Liberdade, Star Spangled Banner...
Tantos levados a crer que é do seu melhor interesse, não haver uma cobertura de saúde no país mais rico do mundo... 14 trilhões de dólares, mas o miserável sempre vai se sentir insatisfeito, sempre vai achar que precisa de mais, e vai negar prestar ajuda aos necessitados.
Vai investir seu patrimônio em bombas. Os trilhões e trilhões gastos nas suas guerras, dando dinheiro pros seus meninos brincarem de soldados e brincarem de heróis. Uma brincadeira horrivelmente mortal. Tem de se fazer negócios com petróleo, ganhar muitos milhões pra vender gasolina pros jipes, helicópteros, aviões. Patrulha pra lá, patrulha pra cá.
É o outro lado de ser o Vencedor. Morrer de medo de que tudo lhe seja tirado. De que em cada esquina conspiram, e almejam por sua vida. A maior bomba do mundo não faz desaparecer esse medo, e só o piora.
Mas como é que se desliga uma obsessão?
Quem sabe uma bomba atômica nesses chineses, que se multiplicam como coelhos, e ameaçam nosso bem estar? Eles estão se espalhando, e vão comer nossa comida, roubar nosso lugar, ser os novos Senhores do Mundo, os novos Vencedores... e, lembre-se, ou você é o Vencedor, ou você é o Perdedor, não existe o meio-termo...
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