sábado, 20 de novembro de 2010

Trem-bala na cabeça



Um outro trecho do artigo de Merval Pereira, Restos de Campanha (link: http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/11/12/restos-da-campanha) me chamou atenção. Ei-lo:

“E tem ainda a medida provisória dando, através do BNDES, R$25 bilhões para financiar o trem-bala entre Rio e São Paulo, dando como garantia as ações de uma companhia privada que ainda não foi constituída e mais um provisionamento de R$5 bilhões para o caso de necessidade.”

Merval falava, no artigo, das surpresinhas guardadas pro Governo depois que passassem as eleições: ressuscitação da CPMF, prova do ENEM, Banco Panamericano, trem-bala... como se vê, só coisa boa.

Com relação ao trem-bala, o Governo soltou essa MP 511/2010, liberando a bagatela dos R$ 30 bilhões mencionados por Merval: 25 através do BNDES, mais cinquinho, só para o caso de necessidade...

Claro, os sábios vão me lembrar que os 25 do BNDES são apenas um empréstimo, não é dinheiro que vai se perder... arrumaram até fiadores, Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa... e, como diz Merval, deu-se por garantia ações de uma companhia privada que sequer foi constituída...

Mas, ah, gente de pouca fé! Quem está assinando a MP é o Cara, o Estadista, o Nosso Guia, o Grande Mestre que nos ensinou o caminho... ele tem 80% de popularidade, o que mais vocês querem? Querem pregá-lo numa cruz, como fizeram com aquele outro Cara? Ah, isso é coisa dessas elites, sempre elas... o povo que ama o Cara, e que o Cara tanto ama, está feliz com os R$ 50 a mais que o Cara deu pra eles... não ficam perguntando sobre os R$ 30 bilhõezinhos que o Cara quer torrar pra fazer o seu trenzinho...

E quanto poder tem o Cara... basta assinar uma MP, e lá se vão R$ 30 bilhões... como se dizia nos tempos de antanho, bastou uma penada d´el Rey... é isso, pro nosso verniz de democracia sobre a sociedade de raízes escravocratas: colocamos na Constituição o Princípio da Separação de Poderes, mas daí damos o jeitinho de fazer o Chefe do Executivo legislar: são as tais Medidas Provisórias, mas claro, só em assuntos emergenciais e de urgência E de relevante interesse público! Note bem isso. Mas esqueça quem é que vai definir se o assunto é emergencial e de urgência, e esqueça quem é que vai definir o que é interesse público... pode ser urgente urgentíssimo, por exemplo, enfiar R$ 30 bilhões pra sair um trem-bala do Rio pra São Paulo... urgente urgentíssimo, e de relevante interesse público! Palavras custam pouco, ou como diriam os americanos, talk is cheap.

Na ditadura militar, na ditadura de Getúlio (Estado Novo), também havia um instrumento para o Executivo legislar por conta própria, sem as aporrinhações de discutir com os representantes da sociedade: era o Decreto-Lei. E, por incrível que pareça, as Constituições destas duas ditaduras, a de 1967 e a de 1937, restringiam as matérias sobre as quais poderiam ser expedidos os Decretos-Leis, a de 1937 por exclusão: poderia ser editado Decretos-Lei pelo Executivo, exceto sobre matérias de legislação eleitoral, moeda, impostos, orçamento, e outras, especificadas no artigo 13 da Constituição de 1937.

Já a Constituição de 1967, em seu artigo 58, estabelecia que os Decretos-Leis só poderiam ser editados para tratar de assuntos de segurança nacional e finanças públicas.

Ou seja, nas Constituições ditatoriais o poder de legislar concedido ao Executivo sofria uma restrição de caráter mais objetivo, que era a necessidade de se ater a determinadas matérias. Uma restrição maior que aquela estabelecida pela Constituição Democrática de 1988 para as Medidas Provisórias, as quais só devem obedecer aos critérios vagos de “urgência” e “relevante interesse público”.

Não quero dizer, por óbvio, que as restrições aos Decretos-Leis não pudessem também ser torcidas, e muito menos que as ditaduras poderiam ser melhores que a democracia, por imperfeita que a democracia, e a nossa democracia em particular, seja. É aquela história do Churchill: a democracia é o pior dos sistemas de governo, à exceção de todos os outros que foram inventados...

Estou apenas fazendo considerações sobre um instituto específico, que excepciona o Princípio da Separação de Poderes ao permitir que o Executivo legisle, e estou ponderando o quanto é difícil para uma cultura acostumada a permitir que o Chefe de Governo, o Presidente, ou o Rei, ou o General, extrapole os limites de seu Poder, passar a uma prática de fato democrática, para além das qualificações que inscreve em sua Constituição.

O uso e abuso das Medidas Provisórias pelos diversos Governos que se sucederam após a Constituição de 1988 atestam isso. Já foi objeto de debate esta distorção aos Princípios democráticos e republicanos, provocada pelas Medidas Provisórias, e já houve até emenda à Constituição para reformular o instituto (EC 32/2001). Esta emenda inclusive trouxe de volta a restrição da incidência da Medida Provisória sobre certas matérias, além de modificar certas regras da sua tramitação.

Mas esta recente penada do Nosso Guia, referente à liberação de R$ 30 bilhões pro trem-bala, aliada à quase ausência de manifestações críticas e debates, é exemplo eloquente do quanto seguimos firmes em nossas tradições de reverência submissa à figura do Líder Carismático. Parece que o novo regime das Medidas Provisórias continua insuficiente para fazer frente a esta nossa tradição, esta nossa cultura, de não questionar, de não criticar, de aceitar passivamente, de abrir mão do Poder que deveria nos pertencer. Está lá na Constituição, artigo 1o, parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O Poder é nosso, mas não questionamos quando aquele que o exerce, em nosso nome, resolve torrar R$ 30 bi num trenzinho... não haveria destinação melhor pra esse dinheiro, no país em que se mata cachorro a grito, no país que não presta serviços essenciais de saúde para uma parcela tão grande da população, no país das diferenças gritantes na distribuição de renda, no país da falta de educação, no país dos grandes roubos constantes, impunes, no país dos milhares de assassinatos arquivados, vai completando a lista...

Vamos, então, à nossa aula de matemática:

Digamos que o Governo, ao invés de destinar R$ 30 bi pras empreiteiras (slurp, slurp, slurp – são as empreiteiras salivando de satisfação) fazerem o trem-bala do Rio pra São Paulo, fizesse empréstimos de R$ 1.000,00, para cada cidadão interessado, de modo simples, sem burocracias exaustivas, sem criar dificuldades pra vender facilidades, quantos cidadãos poderiam se habilitar para o empréstimo?

Resposta: 30 milhões de cidadãos. 30 milhões que poderiam receber R$ 1.000,00, para comprar uma máquina de costura, ou para bancar uma reforma da mercearia, ou uma mesa de sinuca pro botequim.

E nem estou falando de dinheiro perdido para o Governo, seria um empréstimo. Mas um empréstimo simples, sem burocracia, e até sem cobrança. Se o sujeito não pagar, apenas proíba-se-lhe novo empréstimo. Se pagar, deixe-o pegar emprestado de novo, agora até um limite de dois mil. Algo do gênero.

Claro, mil reais vai parecer pouco dinheiro pra muita gente, mas para muitos outros pode fazer toda a diferença. Por exemplo, é mais ou menos mil reais, POR ANO, que se paga de Bolsa Família, o programa assistencial que tanto alarde merece do Governo. No total, também por ano, gasta-se com o Bolsa Família inteiro, cerca de 11 milhões de famílias, ou 44 milhões de brasileiros, uns R$ 10 bilhões.

Pois a penada do trenzinho vai torrar o valor de uns três anos de Bolsa Família, assim, num piscar de olhos. E este é o Governo tão preocupado com os pobres...

E olha que R$ 30 bi é só a previsão inicial pro trem-bala. Especialistas já calcularam que no final a brincadeira pode render uns R$ 100 bilhõezinhos.

Aliás, já escrevi um outro artigo sobre este assunto (http://sinatti.blogspot.com/2010/08/sobre-trens-e-piramides.html), perdoem-me até pela repetição. É que essa história continuava me deixando engasgado. Mas fico por aqui.

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