domingo, 14 de novembro de 2010

Monteiro Lobato e o racismo


Deu nos jornais, há poucos dias: o Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendou a exclusão de um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas, sob a acusação de racismo.

A personagem Tia Nastácia teria sido ridicularizada pelo autor, em razão da cor de sua pele. Num dos trechos do livro Caçadas de Pedrinho, diz-se que Tia Nastácia subiu numas varas de bambu, ágil como macaco de carvão. Em outro trecho, a boneca de pano Emília fala que até a carne preta de Tia Nastácia seria comida pelas onças que invadiam o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Foi por trechos deste teor que os burocratas do Conselho decidiram pela exclusão do livro das escolas, ou por sua edição com notas explicativas, que supostamente reabilitaria a obra em face dos valores de hoje.

E vistos pelos olhos de hoje, os trechos polêmicos parecem mesmo impróprios. Creio que um autor contemporâneo não escreveria estas coisas, pois a sensibilidade do tempo nos fornece um alerta muito maior para evitar ofensas a grupos de pessoas. Hoje aprendemos que não tem graça maltratar ou ridicularizar os negros, ou os judeus, ou os italianos, ou os portugueses, ou os angolanos, ou os alemães, ou os ingleses, ou os nordestinos, ou os cariocas, ou os paulistas, ou os gregos, ou os troianos, ou os cristãos, ou os muçulmanos, se queremos uma vida de paz para todos nós.

Não é fácil, eu sei, lidar com comportamentos atávicos, instintos tribais, disputas de grupos por recursos escassos... Mas é o caminho que tem sido buscado, universalizando direitos, colocando agressores na cadeia, e procurando, em suma, manter a paz social pelo respeito às diferenças. Aliás, guerras foram e são travadas, genocídios e perseguições foram e são praticados, por conta de tais diferenças, ou melhor, por conta da nossa intolerância às diferenças, porque um é judeu, e porque outro é protestante, porque um é tutsi, e porque outro é cigano... muito sangue se derramou, sem vencedores definitivos, sem uma estabilidade final entre dominadores e dominados, a "raça" ou o grupo dos "bons" dominando sobre os "inferiores", ou os "hereges", pela Eternidade... O Tempo continuou sendo uma Roda que não parou de girar...

E a tentativa que costumou dar os melhores frutos, e que vem progressivamente se espalhando, foi a da convivência pacífica entre os desiguais. Apenas respeito, entre si, ou tratar o outro como gostaria de ser tratado, e evitando os extremos de miséria e desesperança que empurra grupos pros radicalismos de todo tipo.

Isto é nossa visão de hoje, uma boa visão. Mas autores antigos viviam outros conceitos, e sem tantas guardas do pensamento às vezes refletiam um conceito pejorativo que a sociedade guardava para alguns grupos. O judeu Shylock em Shakespeare, por exemplo.

E atire a primeira pedra quem não riu da última do português? É saudável também não tratar certos assuntos com extremismos e exageros. Desenvolver sensibilidades histéricas ou neuróticas. Quem vai levar a ferro e fogo, ou crucificar, ou queimar numa cruz, alguém que teve uma expressão feia para um grupo, quando ele próprio tem dezenas de expressões piores para outro grupo?

É preciso cuidado, e muito cuidado, com estes que gritam no meio da multidão, e são sempre os primeiros a posar de santos, e por dentro são cheios de podridão, sepulcros caiados, hipócritas de coração duro, Robespierres incorruptíveis que gozam quando desce a guilhotina no pescoço dos outros...

Como leitor assíduo de Monteiro Lobato, em minha infância, tendo inclusive tendo lido este Caçadas de Pedrinho, no centro da polêmica, devo dar meu testemunho a favor do autor, dizendo que nunca tive uma impressão desfavorável da personagem Tia Nastácia, muito pelo contrário. Os trechos em que se apegaram os burocratas do CNE, aliás, passaram desapercebidos no conjunto da história.

A imagem de Tia Nastácia que ficava era sempre de uma pessoa boa, por quem se tinha carinho, divertida, e, inclusive, inteligente. Não, certamente, instruída, mas com uma inteligência direta das coisas, um “bom senso” obstinado, desconfiado dos novos conceitos da ciência e da tecnologia... Monteiro Lobato fazia questão de mostrar essa inteligência da Tia Nastácia em ação, mesmo que em certas horas os seus argumentos e razões provocassem risos na turminha do sítio, que tinha lido os livros, e escutado os serões de Dona Benta, e captavam as novas idéias, mas que em nenhum momento perdiam o carinho e o respeito pela boa velha, uma outra mãe para eles, ao lado de Dona Benta.

Inclusive Monteiro Lobato escreveu um livro inteirinho, Histórias de Tia Nastácia, para dar maior destaque à sua personagem e à sua psicologia particular: ela é o repositório das histórias mais fantasiosas, da pura imaginação, das camadas profundas do povo, da psiquê. Histórias de Príncipes, e Reis, e Princesas, e Bruxas, e Dragões, e Mágicos, histórias que se repetem, que se misturam, que contam morais, que perdem um pouco o pé e a cabeça... histórias antigas, como as das 1001 Noites, sem autoria determinada, ingênuas e sábias, fantasiosas mas com olho exato para os detalhes, enfocando com muita clareza o Homem e suas espertezas, suas malvadezas, suas valentias, seus galanteios, suas bondades...

Ao fazer este retrato de sua tia Nastácia, Monteiro Lobato construiu uma personagem viva, real. Como aliás eram todas as suas personagens, mesmo aquele feito de um sabugo de milho, ou de uma boneca de pano, grande escritor que era. Era uma empregada sem instrução, negra descendente de escravos, como as milhares que habitavam as fazendas do interior de São Paulo, e Monteiro Lobato nos mostrou como era, sem maquiagens paternalistas e hipócritas, mas também sem lhe negar afeto.

Alguns ideólogos gostariam que não houvesse empregadas sem instrução, descendentes de escravos, e aí ficam brabos com os autores que mostram como são as empregadas sem instrução, descendentes de escravos. Querem calar o mensageiro, pra não ter de escutar a mensagem.

Para alguns, os personagens pobres, por exemplo, têm de aparecer nas histórias sempre como uns explorados, e com espírito revolucionário. Nada de falar errado, também, porque não pode parecer inferiorizado.

Pensam que gostam muito dos pobres, ou dos negros, ou de qualquer outro grupo, mas na verdade os estão inferiorizando, recusando-se a enxergá-los na sua inteireza de Homens, seres humanos, com tudo da grandeza e da abjeção de que o ser humano é capaz. Só gostam do negro e do pobre que aparece nas novelas, sempre com o discurso certinho, sempre uns campeões da Moral, e sempre uns chatos, falsos, unidimensionais...

Não querem personagens tirados da realidade, em suma, querem tipos que façam a propaganda daquelas idéias preconcebidas que carregam na cabeça, e que os deixa muito confortáveis consigo mesmos. Ah, que pessoa linda que eu sou, minha cabecinha abriga todos os lindos pensamentos, aqueles carimbados e aprovados pelo Pensamento Oficial, correto, único...

O escritor que deixa de olhar a realidade para atender a estas expectativas está perdido, vai trocar sua arte pela propaganda.

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