segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Vox populi

Trecho do livro A Trégua, de Primo Levi. Antes, o contexto: o protagonista e seu amigo, sobreviventes do campo de extermínio nazista de Auschwitz, vão à mercearia de “uma velhota enrugada, de aspecto rabugento e desconfiado”, para comprar comida, na Polônia . Ela desconfia que os clientes são alemães, e não judeus italianos como dizem ser. Quando afinal ela que eram judeus de Auschwitz, ela tem esta reação:

“Judeus de Auschwitz? O olhar da velha fez-se doce, e até as rugas pareceram relaxar. Então, era diferente. Levou-nos ao fundo da mercearia, fez-nos sentar, ofereceu-nos dois copos de autêntica cerveja, e, sem perder tempo, contou-nos com orgulho sua história fabulosa: a sua epopéia, próxima no tempo, mas já amplamente transfigurada em canção de gesta, polida e aperfeiçoada por inumeráveis repetições.

Sabia de Auschwitz, e tudo quanto se referisse a Auschwitz a interessava, porque arriscara ir para lá. Não era polonesa, mas alemã: naquela época, tinha com seu marido uma mercearia, em Berlim. Jamais gostaram de Hitler, e talvez tivessem sido bastante incautos ao deixar passar à vizinhança suas próprias opiniões: em 1935, seu marido fora levado pela Gestapo, e nada mais soube a seu respeito. Fora uma dor enorme, mas era preciso comer, e ela continuou em sua atividade até 1938, quando Hitler, “der Lump”, fizera no rádio o famoso discurso, no qual declarava que queria fazer a guerra.

Ela, então, se indignara, e escrevera. Escrevera-lhe pessoalmente, “Ao senhor Adolph Hitler, chanceler do Reich, Berlim”, mandando-lhe uma longa carta, na qual o aconselhava firmemente a não fazer a guerra porque muitas pessoas morreriam, e, além disso, demonstrava que, se a fizesse, a perderia, pois a Alemanha não podia vencer o mundo inteiro, e até mesmo um menino compreenderia isso. Pusera nome, sobrenome e endereço: depois, ficara esperando.

Passados cinco dias, chegaram os camisa-negras, e, com o pretexto de fazer uma busca, saquearam e destruíram a casa e a mercearia. O que encontraram? Nada, ela não fazia política: apenas a minuta da carta. Duas semanas depois, chamaram-na à Gestapo. Imaginava que iriam surrá-la e despachá-la para o Lager: em vez disso, trataram-na com desprezo grosseiro, disseram-lhe que deveriam enforcá-la, mas que haviam se convencido de que ela era apenas “eine alte blöde Ziege”, “uma velha cabra estúpida”, para quem a corda seria um desperdício. Todavia, retiraram-lhe a licença comercia e expulsaram-na de Berlim.

Vivera, na Silésia, do mercado negro e de diversos expedientes, até que os alemães, segundo as suas previsões, começaram a perder a guerra. Então as autoridades polonesas não demoraram a conceder-lhe a licença para a mercearia, já que toda a vizinhança sabia o que ela fizera. Assim, agora, vivia em paz, fortificada pelo pensamento de quanto o mundo seria melhor se os poderosos da terra dessem ouvidos a seus conselhos.”

Grande livro, A Trégua, grande escritor, Primo Levi, que estou conhecendo agora. A edição é da Companhia das Letras, a tradução é de Marco Lucchesi.

Mas transcrevi o trecho acima, também, por isso: para lembrar que, em agosto de 1934, Hitler convocou um plebiscito, já como chefe de Estado e Comandante em Chefe, no qual recebeu 43 milhões de votos, 88% do eleitorado na época.

88% dos VOTOS NA URNA. Hitler era o Cara do Cara, se o critério for o eleitoral.

Não que se possa, jamais, abrir mão da democracia. É o pior dos sistemas políticos criado, à exceção de todos os outros, como disse Churchill.


E eu nem sou tão irônico quanto o primeiro-ministro inglês. É o melhor sistema político criado, ponto. É uma imensa conquista para o ser humano, o único sistema em que se pode ter esperança de ver os direitos individuais respeitados. Pois um dos direitos individuais, uma das liberdades fundamentais, é justamente a liberdade política.

Mas, como a historinha da velha da mercearia nos mostra, a maioria dos votos não assegura, automaticamente, o respeito aos direitos individuais. A maioria dos votos, mesmo de 88%, mesmo de 99%, não é um mandado divino para se fazer o que bem quiser. Não é, em especial, uma autorização para perseguir, dar sumiço, calar, tirar a licença pra trabalhar, enforcar, ameaçar, humilhar, expulsar, invadir, a oposição, as vozes discordantes.

A maioria dos votos não é a voz de Deus. Não pode ser sacralizada. Grande blasfêmia, sacralizar as coisas terrenas. Idolatria. A maioria dos votos condenou Sócrates à morte. A democracia é um sistema para escolher representantes, mas estes representantes precisam ter seus poderes limitados. Existem instituições, existem leis, que obrigam A TODOS. Mesmo aos Caras, aos Incomuns, aos com 88% de votos, ou aos com 80% de aprovação na pesquisa. Mas gente com cimento no lugar do cérebro vai rosnar ressentida: “ISSO É SUTILEZA DE INTELECTUAL, ISSO É COISA DAS ELITE! O QUE IMPORTA É PODER, E EU TENHO PODER, EU, EU, EU, SOZINHO EU, EU TENHO O PODER! ELES ME ADORAM! EU SOU O CARA! EU TÔ NO TOPO DO MUNDO, MAMÃE!”

Parafraseando Jesus: a democracia foi feita para o homem, ou o homem foi feito para a democracia?

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