terça-feira, 31 de maio de 2011

Pink Floyd - Comfortably Numb

Pra terminar (por agora) esta seleção de meus guitarristas/solos diletos, David Gilmour em Comfortably Numb:

Led Zeppelin - Babe I´m Gonna Leave You

Eu não podia esquecer do Jimmy Page nesta lista de meus queridos guitarristas... O peso e a suavidade, no espírito "zepelim de chumbo", bem característico nesta música:

evanhue1030 - Pali Gap

Agora, um ilustre desconhecido grande guitarrista (evanhue1030), com uma versão bacana da Pali Gap, gravada de forma artesanal, segundo nos informa o autor. Grande vídeo no clima havaiano da música! Jimi Hendrix deve ter gostado da homenagem, no Paraíso das Harmonias Celestiais.

Jimi Hendrix - Pali Gap

Seguindo com grandes guitarristas, o mestre Jimi Hendrix, com a fantástica Pali Gap:
(esta guitarra não parece que fala?)

Rainbow - I Surrender

E por falar em grandes guitarristas, mais um que adoro: Ritchie Blackmore

Eric Clapton e Duane Allman (Derek and the dominos - Layla

E o que acontece quando um guitarrista como Eric Clapton cria uma música com um guitarrista como Duane Allman?

Resposta:




Sem esquecer o resto do grupo, claro, mas essas guitarrinhas são infernais...

Eric Voegelin e o gnosticismo


Eric Voegelin descreve uma linha característica na transformação do mundo na Idade Moderna: um desejo de realizar o Paraíso, o Mundo Melhor, o Reino da Justiça, o Reino da Fantasia e do Sonho, neste nosso mundo da Realidade. O Vale das Lágrimas. O Reino dos Acasos, acasos os mais terríveis.


Voegelin nomeia gnosticismo este pensamento, um pensamento que ganhou rapidamente ascendência sobre, hoje, literalmente o mundo inteiro, globalizado.


Como um vírus que se propagou e infestou as mentes. Cujo foco, na sua encarnação moderna, foi a Europa do século IX. Criou uma ilusão da mente, que passou a confundir Desejo com Realidade. No paradigma de pensamento que dominava, anteriormente, havia uma nítida distinção entre estas duas esferas, sintetizada pela interpretação de Santo Agostinho na distinção radical entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.


O Reino de Deus é uma inspiração para o Reino dos Homens. Nunca uma sobreposição, uma confusão. Conjuntos distintos.


Para o que já havia precedentes bíblicos: “Meu Reino não é deste mundo”; “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”; “Eu vim do Alto, para falar coisas do Alto”, e outras falas de Jesus.


Mas, como explica Voegelin, a inclusão do Apocalipse de São João no cânone bíblico gerou disputas acirradas sobre a possibilidade de realizar o Reino na História. Na verdade, ele permanece uma influência para o gnosticismo, que lhe arremeda as cenas na tentativa de reproduzi-lo: os revolucionários sonham com a escatologia do Juízo Final, o grande expurgo que separará enfim santos e impuros, inaugurando o fim do Conflito.


Agostinho, porém, rejeitou incisivamente tal interpretação literal e fundamentalista. Qualificou de “fábulas ridículas” aquelas que alguns crentes sonhavam enxergar na Realidade: Besta, e números, e dragão, e Grande Prostituta, e Satã, e Anjos com Trombetas, e coro de Santos. Imagens nitidamente de sonhos, e em que Deus cumpriria sua promessa de vencer o Mal.


Imagens de sonho, do inconsciente, do abstrato, da eternidade. Não é deste mundo em que acordados caminhamos, comemos, amamos. Este mundo com que temos de lidar, resolver problemas, trabalhar.


Esta a nítida distinção de Agostinho. Dois Reinos.


Pois, como se dizia, o gnosticismo veio contestar este paradigma de pensamento. Buscar o predomínio de uma outra noção, que durante o período em que prevaleceu o pensamento de Santo Agostinho, ficou reduzido a nichos, por vezes rigorosamente combatidos, como heresias.


Mas, a partir do século IX, passou a recobrar força, com a própria mudança de condições decorrentes do início do fim da idade Média. Este pensamento gnóstico, que combatia o pensamento que se lhe opunha. Que revidava a seus argumentos.


Voegelin explica que o fundamento do pensamento anterior era a fé, na sua definição por São Paulo: acreditar em coisas que não se pode comprovar. Não sendo a fé suficiente, o homem vai buscar um vínculo mais forte com sua Esperança. Ele desconfia que será enganado, que será um tolo por esperar, que perderá o seu Bem, o objeto de sua Esperança, se não agir.


A fé é um vínculo imaterial. Mas o que deseja um vínculo material ligando a si o seu Desejo, vai buscar criá-lo. Através da matéria, através da Ciência, através do Dinheiro, através do Poder. De alguma maneira material, que atue neste mundo, que se possa ver.


Justamente, o termo “gnosticismo” provém do grego “gnose”, conhecimento. Como atitude mental, sempre existiu, embora na modernidade é que tenha adquirido prevalência. Trata-se, na origem, de uma pretensão de abarcar a Deus com o conhecimento, ou a razão, ou seja, com algum dos recursos do homem.


Voegelin destaca que não apenas a razão foi apontada como capaz de abarcar a Deus. Também a vontade, ou a emoção, possibilitariam a algum dos aspectos do humano, abarcar, ou conquistar, o divino. Enquanto a tradição dizia que “a sabedoria do homem é loucura para Deus”.


Os homens modernos não queriam mais esperar, não queriam ter fé. Desconfiavam dos que lhe vinham falar de fé, adivinhavam-lhes segundas e terceiras intenções. Debochavam, desprezavam, perseguiam. Sacrificavam, no altar do Progresso. Do Domínio. Do Sucesso.


Não mais precisariam esperar, ou confiar a Deus a realização do seu Desejo. Poderiam conquistá-lo, por força própria.


Politicamente, tal pensamento desembocou nas Grandes Soluções, ou nas Soluções Finais, de alguns “iluminados”.


Pessoas que acreditavam que possuíam um saber superior, uma chave para a História.


Estes, que se sentiam assim, e que se faziam ativistas, visavam a derrubada e a substituição radical do mundo e do homem que conheciam.


O Governo estava todo errado! Mas também, pudera: se a sociedade está toda errada! Mas, também, pudera: se o homem está todo errado!


O homem, o mundo, o governo “certo”, é aquele que trago na minha cabeça. Este é o Reino de Deus e da Justiça. Mas eu não preciso esperar por algum duvidoso além para realizá-lo. Não, não, eu mesmo posso fazer parte da milícia dos anjos, e trazer este Reino de Deus para este reino dos homens. Eu tenho os meios! Eu tenho a ciência! Eu tenho o dinheiro! Eu tenho o poder! Eu tenho as massas! Eu tenho a sabedoria!


Este o homem moderno, na sua faceta política e ativista. Este o gnóstico moderno, diagnosticado por Voegelin.


“Vamos purificar a raça”. “Vamos acabar com as classes sociais”. “Vamos acabar com a propriedade individual”. O gnóstico tem uma pretensa “chave da História”, para “resolvê-la”, para transformá-la. O Mundo da História, do Real, se transformando no Mundo daquele Paraíso que o gnóstico traz na mente, e que ele pensa que vai ser o Paraíso “objetivo”, para todos. Claro que os resistentes serão atirados numa fogueira, mas só por resistirem ao Paraíso que eu, magnânimo, lhes quero dar, já mostra que são do diabo. Aqueles que compartilham da sua crença são os santos, os redentores do homem. O grupo dos eleitos. Os que não compartilham, como já disse, são do diabo. Na melhor das hipóteses, uns iludidos do diabo, esperando para enxergar a luz que trazemos.


Os exemplos estão pela História moderna, as guerras, os campos de reeducação e extermínio, as desapropriações em massa, os grandes expurgos, etc. etc. “Pelos frutos os conhecereis”, mas a força da ilusão é imensa: sempre tem uma explicação, sempre tem um argumento.


Tinha de ser mais radical! Matou dez milhões, matou cem milhões, e não resolveu? É porque foi pouco. Se matasse 1 bilhão, talvez resolvesse. Se matasse dez bilhões, se matasse TODOS, aí, sim, certamente resolveria...


Argumento de louco? Sem dúvida, mas este é o ponto...


O gnosticismo é loucura, e contra a loucura de que valem os argumentos?


Não diferenciar desejo de realidade, não diferenciar estar sonhando ou estar acordado... loucura, pura e simples, mas que pode assumir muitas formas.


Uma criança logo aprende que não pode sair voando pelos ares, para transpor os obstáculos.


Mas por certo que todos nós fantasiamos, que todos nós sonhamos, que todos nós temos nossas aspirações e desejos. Ou não seríamos humanos.


Mas pode se desenvolver um estado patológico, desencadeado por muitos fatores, em que nossos sonhos e desejos podem crescer desproporcionalmente, e tomarem conta de nós.


Pode ser um refúgio, mas podemos nos perder dentro deles, como num labirinto, talvez para nunca mais achar a saída.


Uma questão de equilíbrio, como queriam os antigos: nem só cabeça; nem só coração. Nem só matéria; nem só desejo. Humano, por inteiro.


E este seria o equilíbrio rompido, quando se busca a sobreposição do Reino de Deus com o Reino dos Homens, do Absoluto com o Relativo, do Histórico com a Eternidade. Do Sonho com a Realidade.


Onde havia dois, deseja-se que exista apenas um: um Reino, misturando o Real e o Sonho, Deus e os Homens.


Heresia! Blasfêmia! Soberba! Loucura! - gritariam os Padres da Igreja. Mas que passou a caracterizar o pensamento dominante, com a passagem à idade Moderna. Em alguns lugares, desembocou com a força de revoluções, e em orgias de sangue: guilhotinas, campos de concentração, de reeducação e extermínio. Os “Santos” no Poder, os “Incorruptíveis”...


Em outros lugares, assumiu outros aspectos: palavras de ordem, discursos, propaganda, romantismo, manifestos... seriam os “progressistas idealistas”, prevalecentes nas democracias ocidentais, como Voegelin os chama, em oposição aos ativistas.


Aqueles se contentam com a inação, com o refúgio nos seus bons desejos e esperanças. Estes partem para o ataque, valendo-se de todos os meios para atingir o seu fim: o exercício do poder sem peias.


Dois tipos de gnósticos, um mesmo mal os unindo: a recusa, ou impossibilidade, de separar desejo e realidade. Pode ser que os “progressistas idealistas” representem o aspecto “benigno” da doença psíquica. Como diz Voegelin, os ativistas representam o perigo iminente.


Mas é claro um tipo de gnosticismo só é “benigno”, em comparação com o outro, mais virulento. Como existe o tumor maligno e o tumor benigno. Só que em comparação com a saúde, nenhum tumor é “benigno”.


Os ativistas, inclusive, se valem da inação, ou da cumplicidade, dos “progressistas idealistas” para triunfar. Depois, podem até mandar para o paredón ou para a fogueira muitos dos “progressistas idealistas”. Mas até assumirem o poder vão ter um firme apoio nos seus companheiros gnósticos.






sexta-feira, 27 de maio de 2011

Bob Dylan - My back pages

Bob Dylan completa 70 anos e vem ao Brasil dos Assassinos e Desmatadores Debochados

Bob Dylan completou 70 anos na terça-feira passada, dia 24.05.2011.

Ainda em atividade, deve vir ao Brasil em novembro, para se apresentar em Paulínia - SP, no festival de música SWU (Start With You - Começa Com Você), que, como o nome já entrega, é um festival jovem e "engajado", um evento para a conscientização e a sustentabilidade, para a vida no planetinha.

Tudo a ver. Na mesma terça-feira foi aprovado o Código Florestal na Câmara dos Deputados, tido como uma grande derrota dos ambientalistas. Também na terça-feira foi assassinado um casal de lavradores que denunciava o desmatamento, com o detalhe bizarro e macabro de que os mortos foram vaiados no Congresso.

Nas palavras da jornalista Miriam Leitão, no artigo "A Terra se move" (http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2011/05/26/a-terra-se-move-382721.asp):

(...) "foi uma insensatez a escolha que o Brasil começou a fazer na noite de terça-feira. O Brasil é grande e competitivo produtor de alimentos. Continuaria a ser, com mais segurança, se tivesse escolhido o caminho da conciliação com o meio ambiente. Mas ele escolheu, até agora, aceitar o desmatamento, anular as multas a grileiros e desmatadores, deixar aos estados decisões sobre áreas de preservação, reduzir a proteção das florestas e remanescentes de matas que ainda temos em outros biomas."

(...)

"Símbolo de um dia em que o passado engoliu o futuro foi o momento em que os ruralistas, em plenário, e sua claque, nas galerias, vaiaram vítimas de um assassinato. José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo foram mortos em emboscada no Pará. Um detalhe macrabro: os assassinos arrancaram a orelha de José Cláudio. Os dois eram líderes de projetos extrativistas. Lutavam, entre outras causas, para proteger a Castanheira, árvore que por lei não pode ser derrubada. Tinham 20 hectares em Nova Ipixuna com 80% da área preservada. Juntos com outros 500 pequenos produtores extraíam óleos vegetais, cupuaçu e açaí. Estavam ameaçados e foram mortos por denunciar desmatamento para a produção de carvão e formação de pasto."

Bem, este artigo era pra dar parabéns aos 70 anos do Bob Dylan, e à sua permanente juventude de espírito, à sua disposição para seguir cantando em festivais idealistas, num mundo que segue mais cínico e brutal, mas acabou virando denúncia de nossas mazelas.

Fazer o quê? Terminar o artigo com música, e festa, e amigos:

O Retorno do Lula da Lagoa Negra



Deu no noticiário da semana: "Lula defende Palocci em encontro com senadores do PT" http://gazetaweb.globo.com/v2/noticias/texto_completo.php?c=233150

Vejam na foto:





Mas, afinal, de que tanto riem estes nobres senhores e senhoras?





quinta-feira, 26 de maio de 2011

Eric Voegelin e os gregos




“Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não aceita mais conselho.

Mesmo que o jovem tenha saído da prisão para reinar, e ainda que tenha nascido mendigo no reino.

Eu vi todos os que se movem debaixo do sol ficarem com o jovem que sucedeu ao velho rei,

e que passou a liderar imensa multidão. Contudo, aqueles que vierem depois, não ficarão contentes com ele.

Também isso é fugaz e uma corrida atrás do vento.”

Eclesiastes, 4, 13-16


“A polis é o homem em escala ampliada”.

Platão, República, 368 c-d

Usando o exemplo dos gregos, Voegelin defende, em páginas inspiradas, a verdade “teórica”, capaz de se contrapor à tradicional verdade imperial, ou lei do mais forte.


“O teórico é o representante da nova verdade, que rivaliza com a verdade representada pela sociedade”; mas “uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência (...).”


Ou seja: o sentido da existência, para uma teoria, é tudo submeter à lei do mais forte. Para a outra

teoria, é tudo submeter à lei da Justiça, tanto quanto se possa divisar esta Justiça transcendental, em nossas leis imperfeitas.


Voegelin invoca Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Menciona Sólon, menciona Parmênides. Mas é no trágico Ésquilo, e sua peça As Suplicantes, já comentada, que Voegelin vai resumir a nova verdade teórica, conforme aplicada à política: o rei mergulha nas profundezas de sua alma para conhecer Dike, na mitologia grega a deusa da Justiça. Após, o rei reúne o povo e submete o caso “à Assembléia geral, Koinon, a fim de persuadir seus membros a concordar com a decisão a que chegara em sua alma. (...) o povo (...) segue o mergulho do rei na profundidade da alma. O Peitho, a persuasão do rei, forma as lamas de seus ouvintes, que estão dispostos a deixar-se formar, e faz que a Dike de Zeus prevaleça sobre a paixão, de tal maneira que a decisão madura representa a verdade do deus. O coro resume o significado desse fato com a linha: “É Zeus quem faz o fim acontecer”.”


Remeto o leitor às páginas de Voegelin, pois não é possível transcrever todas as suas linhas, muito interessantes, sobre a criação, pelos filósofos gregos, em especial Platão e Aristóteles, desta verdade teórica nova, ilustrada pela tragédia de Ésquilo. Posso, aqui, apenas fazer algumas indicações gerais do argumento de Voegelin.


Voegelin relaciona a busca filosófica pela natureza verdadeira de Deus com a elaboração da nova teoria política. “Platão absorveu a crítica feita por Xenofane à simbolização imprópria dos deuses. “Enquanto os homens criarem deuses à sua própria imagem”, argumentava Xenofane, “a verdadeira natureza do Deus único, “o maior entre os deuses e homens, e diferente dos mortais em corpo e pensamento” terá de permanecer oculta; e somente quando Deus for o único compreendido em sua transcendência informe como o mesmo Deus de todos os homens, a natureza de todos os homens será compreendida como uma coisa única, por ser idêntica a relação de cada um deles com a divindade transcendente. Dentre todos os pensadores gregos primitivos, Xenofane talvez tenha sido o que com mais clareza percebeu a idéia universal do homem por meio da experiência da transcendência universal.”


Ou seja: a igualdade de todos os homens, definida pela igualdade da relação de cada um dos homens com a divindade transcendente. Nenhum homem pode dizer: “eu tenho uma relação especial com Deus, eu represento a Sua vontade na Terra”. Todos os homens são mortais, limitados a este mundo. Ou algum homem já ressuscitou?


Se você não ressuscitou, seja você um grande Khan, seja você Nietsche, um super-homem, seja você Stalin, um homem de aço, você não tem uma relação privilegiada com Deus que te faça diferente de mim. Você pode ter uma relação privilegiada com o poder, com a força. Mas quem disse que a natureza de Deus é o poder, é a força?


Isto quem diz é a teoria antiga, teoria do império. A força e o poder podem estar com você hoje, amanhã pode não estar. A existência é uma Roda, temos visto. Numa coisa o escriba mongol estava certo: “Deus o saberá.”. O amanhã não pertence ao homem.


Concordo com a teoria nova, portanto. A relação dos homens com a divindade transcendente é igual, sejamos iguais, politicamente, portanto. Vamos refletir esta igualdade, em nossos pensamentos, em nossas práticas, em nosso ser, para ficarmos em harmonia com esta relação do homem com a divindade.


Voltemos a Voegelin:



“A verdade do homem e a verdade de Deus são uma só coisa, una e inseparável. O homem viverá a verdade de sua existência quando abrir sua psique à verdade de Deus; e a verdade de Deus tornar-se-á manifesta na história quando houver moldado a psique do homem para se fazer receptiva à medida invisível. Esse é o grande tema da República ; no âmago do diálogo, Platão colocou a parábola da caverna, com sua descrição da periagoge, a conversão, o ponto de inflexão a partir do qual a inverdade da existência humana, tal como prevalecia na sociedade sofista ateniense, é superada pela verdade da Idéia. Platão compreendeu, ademais, que a melhor maneira de assegurar a verdade da existência era a educação adequada desde a primeira infância; por essa razão, no segundo livro da República, ele quis eliminar da educação dos jovens as simbolizações impróprias dos deuses, tais como eram propagadas pelos poetas, e substituí-las por símbolos adequados”.


(...)“ Se, durante a juventude, a alma for exposta ao tipo errado de teologia, ficará deformada em seu centro decisivo, no qual se forma o conhecimento da natureza de Deus; a alma se tornará presa da “arqui-mentira”, o alethos pseudos, que é a concepção errônea dos deuses. (...) na interpretação teórica da sociedade o princípio antropológico requer o princípio teológico como seu correlato. A validade dos padrões desenvolvidos por Platão e Aristóteles depende da concepção de um homem que pode ser a medida da sociedade porque Deus é a medida da sua alma”.


Importa, portanto, definir a natureza de Deus. Deus trata desigualmente os homens? Ou Ele derrama o seu sol, faz cair sua chuva, sobre justos e injustos, ricos e pobres, fortes e fracos?


Se a relação de Deus com todos os homens é esta igualdade na transcendência, se os homens todos morrem, se nenhum ressuscita, por que é que alguns de nós se consideram “iluminados”, com acesso a uma relação privilegiada com o divino, detentores de alguma verdade, de algum poder especial, super-homens, ou coisa que o valha? Por que consideram que, por terem mais dinheiro, ou por serem mais fortes, ou por terem mais poder, ou por serem mais inteligentes, têm uma especial relação com Deus? Ao que me consta, o único que ressuscitou rejeitou os reinos do mundo...


Um delírio, por certo, mas que não deixa de ter abrigo em todos nós, e que não deixa de arrastar milhões a abismos, ao longo da História. Sim, vencem as guerras, impõem o seu poder, escravizam muitos povos. Mas ao fazê-lo, não podem reproduzir a Justiça do Deus único, sua igualdade, na transcendência, perante todos os homens.


E por isso a teoria do império, a teoria da desigualdade entre os homens, é uma “arqui-mentira”, e não pode se sustentar. A teoria nova, que desafia a antiga, procura reproduzir, nas relações dos homens, a igualdade que preside a relação do humano com o divino.


Neste sentido, Platão concebe a fórmula “Deus é a medida de todas as coisas”, em oposição à famosa definição de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”. É preciso conhecer a verdadeira natureza da divindade, da sua relação com o homem, para conhecer a medida de tudo. Esta relação, está visto, é de igualdade.


Eric Voegelin e as duas verdades







Voegelin relaciona o desenvolvimento político grego a uma ruptura com um antigo padrão, representado por uma carta escrita pelo mongol Kuyuk Khan a Inocêncio IV, na qual se justifica a guerra de conquista mongol, e o extermínio das populações resistentes.


O argumento desta carta é o seguinte:


“O Deus eterno matou e destruiu os homens daqueles reinos.

Salvo para cumprir a Ordem de Deus, como poderia alguém, por sua própria força, matar e conquistar?


(...)


Vós, em pessoa, à frente dos reis, todos juntos, sem exceção, vinde e oferecei-nos serviço e homenagem;

Então, nós reconheceremos vossa submissão.

E se vós não observais a Ordem de Deus,

E desobedeceis nossas ordens,

Saberemos que vós sois nossos inimigos.

Isso é o que nós damos a conhecer.

Se desobedecerdes,

Que saberemos então?

Deus o saberá”.


Bem direto, não? Contra esta ordem de idéias, a “lei do mais forte”, em que a força é que representa a “Ordem de Deus”, é que Voegelin vai opor um desenvolvimento, exemplificado pelos filósofos e trágicos gregos, em que o homem vai opor uma outra verdade, teórica, a esta verdade dos impérios.


Voegelin pergunta: “Será o choque dos impérios o único teste da verdade, com o resultado de que a potência vitoriosa é a que tem a razão?” Pragmáticos de todas as épocas e quadrantes se inclinam a dizer que sim. “O sucesso material é que importa, a História é escrita pelos vencedores, é o que os olhos vêem...” são algumas das sentenças típicas.


Mas Voegelin contrapõe esta verdade, que chama de “imperial”, a esta outra, que chama de “teórica”, considerando que esta foi capaz de desafiar e modificar esta idéia de império.


“A descoberta da verdade capaz de desafiar a verdade dos impérios cosmológicos é, em si, um evento histórico de grandes dimensões. É um processo que ocupa cerca de cinco séculos da história da humanidade, correspondendo aproximadamente ao período de 800 a 300 a.C.; esse processo ocorre simultaneamente nas várias civilizações sem influências mútuas aparentes. Na China, corresponde à idade de Confúcio e Lao Tzé e de outras escolas filosóficas; na Índia, à idade dos Upanishads e de Buda; na Pérsia, ao zoroastrismo; em Israel, aos Profetas; na Grécia, aos filósofos e à tragédia. Pode-se identificar como fase específica e característica desse longo processo o período em torno de 500 a.C., quando viveram Heráclito, Buda e Confúcio.”


Eric Voegelin e Sólon




Eric Voegelin observa com precisão o fenômeno revolucionário, fazendo uma radiografia fina do tipo de homem envolvido neste contexto. Faz uso de uma vasta e selecionada bibliografia, resgatando documentos importantes do passado. Fora que conhece em profundidade os grandes autores que conduziram o pensamento: Aristóteles, Platão, Hesíodo, Santo Agostinho, Rousseau, Marx, Hegel, Heráclito... antigos ou modernos, ele conhece bem a obra e traz interpretações interessantes, destas obras.


Compara-as, relaciona-as. Possui elementos para compor seu estudo. Realmente, um homem de muita leitura. De muito pensamento.


Sobre os gregos, ele nos diz que, através da vivência de seu teatro, eles adquiriram uma capacidade coletiva de tomar decisões coletivas. Usa o exemplo da peça de Ésquilo (séc. V a.C.), “As suplicantes”: eram mulheres que fugiam dos egípcios, que as queriam forçar a dormir com eles. Vão pedir abrigo em uma cidade Estado grega, e o seu rei tem o dilema: deve aceitar o pleito que lhe é dirigido, como a voz de sua consciência ordena? Ou deve ponderar que oferecer abrigo às fugitivas seria desafiar a guerra com o Egito, custosa para toda a cidade de que é o representante?


Num mergulho em sua consciência, ele percebe que deve afrontar o perigo, e fazer o que sua consciência manda. Mas ele não pode tomar sozinho uma decisão que afeta a vida de todos. Por isso ele vai reunir o povo em Assembléia para decidir o seu destino, usando da persuasão para que a decisão coletiva seguisse aquele ditame de sua consciência. De fato, a cidade Estado termina por abrigar as fugitivas.


Tal desenvolvimento do teatro grego permitia que os cidadãos concebessem com clareza seu papel de participação na vida pública. E vice-versa, o desenvolvimento político de algumas cidades Estados gregas permitia que o teatro refletisse este desenvolvimento.


O grande legislador Sólon, de Atenas, no séc. VI a.C., conseguira uma transição pacífica do governo da aristocracia para o governo democrático, o primeiro do mundo. E ele era capaz de formular um tal pensamento: “é muito dificil conhecer a medida invisível do julgamento justo; e, no entanto, esta é a única maneira de conhecer os limites corretos de todas as coisas”.


Tal capacidade fez dos gregos um farol do mundo. Uma de nossas raízes, como civilização ocidental, sendo as outras, a romana, e a judaico-cristã.


Sólon aboliu as dívidas, que faziam de uns gregos escravos de outros. Não pode haver tal desigualdade entre os cidadãos. Ou não haverá cidadãos, mas senhores e escravos. E a guerra civil.


Sólon aboliu a exclusividade do poder político para os antigos senhores de terras, os membros da aristocracia. Havia outros gregos que possuíam a capacidade de discutir e decidir suas leis e seus futuros. Havia comerciantes, industriários, que enriqueciam, mas não podiam exercer direitos políticos. Guerra civil à vista.


E Sólon espantou o fantasma de mais esta guerra civil, dividindo os poderes políticos entre todos os cidadãos gregos. Tornando-os mais iguais, uns aos outros.


Sólon, que era um filho da aristocracia, mas que aprendera a ganhar a vida como comerciante. Ele era a pessoa indicada para unir aristocratas e comerciantes, senhores de terras e burgueses, pois ele tinha a mente de cada um deles. Entendia suas queixas, suas esperanças.


Sólon, um homem culto, instruído nos poemas antigos, um homem viajado, conhecedor dos costumes dos povos.


Sobre ele diz Voegelin:


“Como estadista, ele viveu em tensão entre a medida invisível e a necessidade de encarná-la na ordem social concreta; por outro lado, “a mente dos imortais é totalmente invisível para os homens” e, por outro lado, “instado pelos deuses fiz o que fiz”. Por sua vez, Heráclito, que sempre aparece como uma grande sombra por detrás das idéias de Platão, aprofundou-se mais nas experiências que levam à medida invisível. Reconheceu sua validade suprema: “A harmonia invisível é melhor (ou maior, ou mais poderosa) que a visível”.


Eric Voegelin


É um grande erudito, historiador, pensador político, que viveu e pensou em uma época próxima (nasceu em 1901) e escreveu uma vasta obra.


O livro A Nova Ciência da Política, publicado no Brasil em 1982, pela Editora da Universidade de Brasília, traz uma síntese de seu pensamento.


Vale a pena conhecê-lo, para clarificar certas questões de nosso mundo. Descaminhos que o homem cometeu, e que custaram muito sangue.


Os movimentos fanatizados, em que se justificou matar alguns milhões, para fazer “um mundo melhor”.


Até hoje sobrevivem aqueles resquícios da barbárie que assolou o século XX. Voegelin sofreu de perto estes acontecimentos, era professor na Áustria quando esta sofreu a anexação pelos nazistas. Teve de abandonar seu país, e passou a viver e lecionar nos Estados Unidos. Fez sucesso, lá, entre o meio erudito, com seu alerta veemente contra os perigos do pensamento fundamentalista.


Nesta época, tal pensamento estava em voga, com roupagens modernas, “científicas”, prometendo acabar com toda a angústia do homem. Um verdadeiro delírio coletivo, em que alguns fanatizados acreditavam que o homem médio seria um Shakespeare, ou um Newton, tudo junto. A era em que se acreditou (se acredita ainda) em “super-homens”, de vários tipos.


E o pior é que o delírio se propagou de tal forma, e adquiriu tal força, que passou a reger povos e nações. Alguns “escolhidos” assumiam o poder para nunca mais largá-lo (exceto, é claro, no caso de morte). E se acreditavam plenamente justificados para exercer um mando eterno, afinal, eram os únicos detentores da “verdade”. Os representantes da “raça” eleita. Ou da “classe” eleita.


E daí faziam as perseguições, os expurgos, as guerras. Podemos empilhar milhões e milhões de cadáveres à frente de seus olhos. O louco, imbecil, vai ver apenas o tal “mundo melhor” que está criando em sua mente.


Ah, época de “super-homens”, época de “iluminados”... livrai-me dela, é época de diferenciação entre os homens, época de morte e de falta de liberdade.


P.S. Segue um link para download do livro A Nova Ciência da Política:


http://www.4shared.com/document/X0FPlMVC/Eric_Voegelin_-_A_Nova_Cincia_.html

sábado, 21 de maio de 2011

O bom exemplo frutifica



Palocci: Algo de podre no reino da Bruzundanga



Que tal a manchete do Globo de quinta-feira, 19.05.2011?


“Palocci: tropa de choque do Planalto barra investigação”


e:


“Outros cinco ministros têm empresas de consultoria que, segundo a Receita, estão ativas: José Eduardo Cardozo (Justiça), Fernando Bezerra (Integração Nacional), Moreira Franco (Assuntos Estratégicos), Leônidas Cristino (Portos) e Fernando Pimentel (Desenvolvimento).”


E, agora, mais esta notícia: “Palocci faturou R$ 20 milhões em ano de eleição e trabalhou para 20 empresas” http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/05/20/palocci-faturou-20-milhoes-em-ano-de-eleicao-trabalhou-para-20-empresas-dizem-jornais-924500981.asp


Negócio bom, esse, de Consultoria. Rende R$ 20 milhões em um ano? Corram, corram, ministros abram também sua Consultoria!


Como é que se sente, lavrador, como é que se sente, operário, como é que se sente, engenheiro, professor, policial, advogado, juiz, médico, soldado, pessoa honesta, trabalhadora, pagadora de impostos?


Você que, pra fazer R$ 20 milhões, vai ter de suar muito, por muitos anos? Você, que suando sangue, não vai chegar perto de R$ 200 mil, a vida toda juntando?


Pois é isso que o Governo quer que você engula, sorrindo, porque estão nos dando o tal Brasil melhor... é isso que o Governo proclama normal, legal, moral... que um fulano, “não é uma pessoa qualquer!”, fature R$ 20 milhões, no decorrer de um ano. Um médico, Palocci é um médico. E os médicos do serviço público, atendendo sem estrutura, ganhando pouco, trabalhando muito, por que eles não faturam R$ 20 milhões?


Ah, tudo isso na cara, e o Governo move “tropa de choque” para barrar investigação. O Procurador Geral da República defende que não vê nada de errado. Agora, muda de idéia, vai pedir umas explicações, ganhar um tempo... e senadores vêm esbravejar, sentem-se no direito de esbravejar, e justificar o “cumpanhêro”, o “colega”... e a oposição se mostra dividida, dois de seus líderes, José Serra e Aécio Neves, dão declarações conciliatórias... e a própria presidenTA diz a interlocutores aliados que “a situação de Palocci está sob controle... http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/05/19/dilma-diz-interlocutores-aliados-que-situacao-de-palocci-esta-sob-controle-924500349.asp


Que controle é esse, meu Deus, eu ou eles que são insanos? R$ 20 milhões de faturamento num ano, pra fazer o quê? Fabricar um prego? Pregar uma tábua? Escrever um livro? Plantar caqui? Trocar esparadrapo? Não, prestou umas consultorias, coisa fina, não deu nem pra suar... maiores detalhes não se pode fornecer ao adorável público, sabe como é, eu fiz umas cláusulas de sigilo... mas tá tudo declarado pra Receita, dos meus R$ 20 milhões eu tirei 30% pro Leão. Tá bom, sobrou R$ 13 milhõezinhos, dá pra viver... pago meu imposto, sou um patriota!


E o presidente do Senado, José Sarney... (conhecem esse nome? Lembram dele? 81 anos... e o velhinho quer mais poder, benza Deus! Deve ser o viagra...)


José Sarney, que como presidente do Senado decide sobre instaurações de CPIs no Congresso...


Pois o José Sarney, do alto de seus muitos anos na Coisa Pública, nos brinda com a sua experiência, dizendo que não vê “motivo nenhum pra nenhuma CPI”. O que quer dizer, em português escorreito: não vai instalar CPI alguma.


Tudo normal, tudo dominado.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Príncipe deste Mundo





“Quando vês a uma serpente num boião de ouro, acaso a aprecias? Não sentes por ela o mesmo horror, por causa de sua natureza mortal e venenosa? Faz o mesmo com o malvado, quando o vires em meio às suas riquezas.” - Epicteto


O ex-ministro da Fazenda, atual ministro da Casa Civil, Antonio Palocci (aquele do caseiro Francenildo, lembram?), multiplicou seu patrimônio por 20, num espaço de quatro anos. Não, ele não furou um poço de petróleo, ele não ganhou na loteria.


Mas ele prestou “serviços de consultoria”, através de uma empresa, a Projeto, fundada em 2006, e da qual Palocci possui 99,9% do capital. 99,9%, nada menos. A empresa tem um sócio, o economista Lucas Martins Novaes, com cota de R$ 20. Não, não está errado, são vinte reais a cota do sócio.


Tudo normal, no país surreal. Palocci já soltou nota pra dizer, em suma, que todos, ou quase todos, fazem isso mesmo. E que está tudo dentro da legalidade das nossas leis brasileiras. Podíamos ter logo uma lei pra deixar tudo bem claro, e acabar com estes questionamentos, estes aborrecimentos:



Artigo 1o: Se você é uma pessoa incomum, amiga d´el Rey, ou de la Reina, pode se locupletar estupidamente, sem precisar fornecer qualquer explicação à patuléia.


Artigo 2o: Revogam-se todas as disposições em contrário.


Pronto. Estava resolvido o negócio. Do jeito que tá, fica esse teatrinho, esse bafafá, mas todo mundo já sabe o final, já sabe que não vai dar em nada. Bom, pelo menos assim se vende jornal, e se vende revista, e alguns cidadãos podem escrever uma carta aos jornais, ou escrever um artigo num blog, e se mostrar indignados, lavar um pouco a alma, até o próximo escândalo.


Nada de novo no reino da Brasilônia, no reino dos Bruzundangas: tá valendo tudo.


E a patota veio em defesa de Palocci: só gente boa, gente da alta. A própria Presidenta, vejam só o que nos diz nossa Dilma Rousseff:


  • A saúde do ministro Palocci vai bem. Ele está inteiro ali, vocês não estão vendo? Todos estamos saudáveis. Todos estamos bem neste país.


“Todos estamos bem neste país”... Ser Presidente do país, oh, perdão, PresidenTA, para falar isso... não era melhor ter nascido sem língua?


Também o Senador Lindbergh Farias (PT – RJ) proclamou, do alto de sua sapiência: “A base e o PT estão confiando (sic) e solidários com o ministro Palocci, que vai sair desse processo fortalecido.” Lindbergh, ex-líder dos estudantes de cara pintada em protesto contra o tráfico de influência na Corte do ex-presidente "neo-liberal", Fernando Collor de Mello... Toca Chico Buarque: “Quem te viu / Quem te vê...”


E também temos a Senadora Marta “sempre ela” Suplicy (PT - SP), que botou a boca no trombone para defender Palocci: “Não estamos falando de uma pessoa qualquer!”


Ecos da “pessoa incomum”, do ex-presidente Lula, ecos do desprezo ao “sujeito da esquina”, do juiz do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes... tudo dominado, Executivo, Legislativo, Judiciário, todos os Poderes da República (República?), endossando a cultura dos senhores e dos escravos.


Pobre país.



- Vil filósofo! diz-me um grão senhor que se preza de livre e independente; - ousas chamar-me escravo, a mim, cujos antepassados foram livres, a mim, que sou senador, que fui cônsul e que sou favorito do príncipe? - Grande senador, provai-me que os vossos antepassados não sofreram a mesma servidão que vós. Mas o concedo. Foram generosos, e sois concupiscente. Foram frugais, e sois glutão. - Que tem que ver isso com a liberdade? - Muito, porque não chamarei livre ao que faz o contrário do que quer. - Mas eu faço tudo quanto quero, e ninguém pode forçar -me a vontade, a não ser o Imperador, que é meu senhor, que é senhor de tudo. - Grande cônsul, acabamos de ouvir dos vossos lábios a confissão de que há um senhor que vos pode forçar a vontade. Se é senhor de todo o mundo, isso vos proporciona o triste consolo de ser escravo numa grande casa e no meio de milhões de escravos.

- Epicteto


terça-feira, 17 de maio de 2011

Educação




Outros grandes deboches da nossa indústria do material escolar:


Na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro foi distribuída cartilha de alfabetização com os “versinhos”: “Eu suo na chaninha / Aí, ela cheira mal / Ela cheira a chulé”. Segundo os “educadores” responsáveis pelo livrinho, “chaninha” é chinelo, embora todo mundo só conheça “xaninha”, apelido de gatinha, ou do órgão sexual feminino.


Na Bahia, a revista “Viva!”, uma coletânea de experiências pedagógicas de escolas baianas (que experiências!), foi distribuída pela Secretaria de Educação do Estado, com uma tira em quadrinhos do personagem Chico Bento com o diálogo adulterado, contendo um palavrão. O cartunista Maurício de Sousa, “pai” do Chico Bento, ficou indignado, com razão, e prometeu processar os responsáveis.


Peço desculpas ao Maurício de Sousa, mas reproduzo aqui os quadrinhos da polêmica, pois se trata de denunciar um abuso. Vejam o caso com os próprios olhos, portanto:





Se chegamos a este grau de abuso, é porque o negócio está podre até a medula. Volta-se ao tema da necessidade absoluta de se centralizar em um órgão federal a definição do conteúdo do ensino, e o desenvolvimento do material didático, e do treinamento dos professores, como maneira de se atingir uma uniformização do ensino básico para todos os brasileiros, além de evitar as corrupções e as deturpações que a falta de uma política transparente, submetida ao crivo de todos os brasileiros, proporciona.


Se o material que vai guiar o ensino de cada criança do Brasil, em cada escola, é aberto aos pais de todos os alunos, submetido à sua crítica, à sua avaliação, será que aceitaríamos uma cartilha que deseduca? Um livro escolar com palavrão?


Será que o pai engenheiro vai admitir que o livro básico onde seu filho estudará, que definirá o conteúdo da matéria que terá de lhe ser ensinada por seus professores, diga que dois mais dois é igual a cinco? Ele vai reclamar, e ao fazê-lo, beneficiará toda a sociedade.


Cada escola, em todo o país, deveria acatar uma diretiva do conteúdo básico da educação. 1o ano? Tem de ensinar soma, subtração. Tem de ensinar a capital do Brasil. A data do descobrimento. O mundo do Egito antigo, e da Mesopotâmia. Ler 8 livros de uma lista de 100. 2o ano? Tem de ensinar multiplicação, divisão. Tem de falar em Estados do Brasil, países do mundo. Tem de ensinar isso e aquilo.


Tem de bem definir o conteúdo. Tem de treinar os professores para a transmissão esperada do conteúdo. Nada de tópicos soltos, genéricos: aula 16: falar de Lenin, Marx e Freud. Aula 17: falar de Pedro Álvares Cabral, Alexandre, o Grande, Sócrates.


Nada disso. Se precisa falar de Alexandre, definir o que se deve falar: o período em que ele viveu, suas conquistas, mostradas no mapa (ver figura 13 do material didático), falar da divisão do Império após sua morte, da integração de Ocidente e Oriente, da difusão do helenismo. Isto, é claro, elaborado pelos professores, a partir das experiências nas salas de aula, com a previsão do tempo que se precisa dedicar ao ensino, com a definição de métodos expositivos, materiais complementares, etc. etc.


Que os tenham acesso pleno ao roteiro elaborado, que ele possa acompanhar a forma da exposição da matéria ao seu filho. Saber que este mês o seu filho deverá aprender sobre Alexandre, sobre Pedro Álvares Cabral e sobre Sócrates. E, se não estiver aprendendo, cobrar da escola. Este é o conteúdo mínimo, básico, que a escola se compromete a transmitir, ou então não poderá funcionar a escola.


Aos que criticam dizendo que este método “engessa” o professor, “poda-lhe a criatividade”, ou algo do gênero, que se diga que a diretriz diz respeito só ao conteúdo básico, que deve ser transmitido. Se ele ensinar o ano em que viveu Alexandre, ele, ou a escola, pode ensinar todos os nomes dos governantes Ptolomeus, se entender conveniente.


Além disso, os métodos para a transmissão dos conteúdos, os exemplos sugeridos, devem ser entendido como um roteiro, um mapa, um facilitador do trabalho. Para ensinar a regra de três, é interessante fazer esta exposição, apresentar os seguintes exemplos, etc. Este roteiro, estes exemplos, já se mostraram eficazes para que os estudantes aprendessem.


No entanto, se o professor / a escola, desenvolverem outros métodos expositivos, outros exemplos, que ótimo! Compartilhem-no, em listas de emails, em encontros de mestres, em artigos publicados. Mas deve ser demonstrado o resultado: que os alunos aprenderam melhor, e mais rápido, em testes elaborados para medir a qualidade do ensino.


E que os professores e as escolas, compartilhando suas experiências bem sucedidas, ganhem reconhecimento por isso, recebam estímulos, prêmios.


E tenham a oportunidade, como cidadãos, de influir também na política de ensino, fazendo suas sugestões, críticas, propostas, a serem processadas e respondidas pelos órgãos formuladores dessa política.


Educação


O Ministério da Educação e Cultura (MEC) distribuiu 485 mil exemplares de um livro para os alunos da rede pública, “Por uma vida melhor”, onde se lê “Pode falar “nós pega os peixe”? É claro que pode.”


Eu havia feito uma conta, estimando, por baixo, o preço de cada livro em R$ 10. multiplicado pelos 485 exemplares, dava um total de R$ 4 milhões e oitocentos e cinquenta mil reais de gasto do Ministério da Educação, com uma compra de livro.


Hoje, na coluna do Ancelmo Gois, no Globo, leio que só para a editora, rendeu R$ 5 milhões. Para a autora do livro, rendeu R$ 700 mil. Deve ter saído bem mais caro que R$ 10 o exemplar do produto. Não se pode esquecer o preço para o “apadrinhamento” do produto escolhido.


Afinal, por que escolher um determinado autor, uma determinada obra, para ser adotada pela escola pública e gerar edições de centenas de milhares de exemplares?


O exemplo de se escolher uma obra com aprovação de desvios da linguagem deixa este critério político para decidir a adoção de uma obra na escola pública bastante desnudo. Claro que a cara de pau vai alegar que toda e qualquer obra, para ser adotada na escola pública, passa por um rigoroso sistema de análise, “objetiva”, etc, etc, as maiores justificações, e claro que não existe essa coisa de corrupção, dinheiro por fora, nada disso. Está aí a realidade do Brasil que não me deixa mentir, você tem de acreditar que a realidade é aquilo que eu falo. Critérios objetivos, seleção isenta, rigorosa análise... e tchará, temos aí um livro que ensina a falar errado...


Coisa boa para o Brasil... não, a escola não precisa ser boa... Olhe como avançamos, vejam esse gráfico aqui, o governo está fazendo um ótimo trabalho, não existe desnível na educação do país, somos um povo muito educado, basta olhar pro seu lado, não, você não vê uma multidão de ignorantes, gente que devia ter ido pra escola, mas não foi, ou foi e aprendeu muito pouco, em troca dos seus anos que passou na sala de aula.


Não, não precisamos competir com os outros países, podemos dispensar uma população educada. Somos gigantes pela própria natureza, impávidos colossos, mas uma nação não se faz sem um povo bem educado e esclarecido.


Faz-se uma dominação de senhores e de escravos. Um país com poucos “bem sucedidos”, e muitos necessitados, muitos roubados.


Dinheiro há, até demais, para fazer uma boa escola. Já falei sobre os livros didáticos em outros artigos do blog, falo de novo agora: ao invés de gastar 5 milhões numa edição de livro aqui, 5 milhões na outra, tenha-se um livro unificado, para todas as escolas do país. Com o conteúdo básico do que se considerar mais importante na educação.


A matéria que a menina do Piauí estuda precisa ser igual à do garoto de São Paulo. O que é preciso ensinar? História do Brasil? Datas, personagens, acontecimentos? Pois que se pague o trabalho para profissionais, historiadores, professores, especialistas. Considerando-se publicações realizadas, inclusive em órgãos reconhecidos pelas comunidades científicas, e de estudos superiores, de abrangência internacional, especializações daquele profissional sobre aquele tema, prêmios recebidos, etc.


E pague-se por artigo, um preço justo, mas não vinculado à tiragem. Vai receber um preço justo, e ter a honra de ter seu nome incluído num livro para a educação dos brasileiros. E claro que não é nada forçado, a oportunidade estará aberta para qualquer inscrito.


Cada um escrevendo sobre um tema de sua especialidade, de acordo com regras prévias, também estabelecidas por comissões de especialistas, educadores, para formar o conteúdo de uma matéria. Tem de falar sobre o descobrimento? Sobre o Reinado? Sobre a República? Quantas páginas sobre cada assunto? Quais os dados que não podem faltar? Quais os personagens, os desdobramentos. De acordo com tal divisão os autores podem desenvolver o seu tema.


Cada trabalho seria publicado, anunciado, disponibilizado para qualquer interessado, pela internet, por arquivos de pdf, ebooks, por todos os recursos. Qualquer um poderia criticar qualquer aspecto do trabalho feito. Inclusive, comissões de professores, especialistas, que poderiam apontar algum erro. Cada crítica seria encaminhada a um órgão de especialistas na matéria, para que falassem sobre a eventual procedência da crítica, para revisões.


Assim se faria o conteúdo de cada livro de educação básica do país. Assim se faria a política de ensino. Fixando as diretrizes, igualando as chances, submetendo-se ao controle público, à transparência.


É para ensinar matemática? O que, soma, subtração, poligonal, raiz quadrada? Para tudo existe um método, uma ordem, uma classificação. A melhor forma de escolher o melhor método é verificando os resultados. Com o método x 50% dos alunos aprenderam num tempo y? Pois com o método a 80% dos alunos aprenderam num tempo y/2. Este último método é o melhor.


Então, o autor, o especialista, o educador, preparador dos currículos deveria selecionar os melhores métodos, construir seu trabalho sobre eles.


É melhor ensinar frações primeiro, e depois conjuntos? Ou vice-versa? Este é o trabalho de definir “o que ensinar”. Depois de definido isto, passa-se ao outro ponto crucial do problema: “como ensinar”, aquilo que se definiu como necessário ensinar.


Precisamos ensinar a soma? Ótimo. E em qual série se deve ensinar a somar, e de que maneira, transmitindo qual conceito, quais exemplos, eu vou obter o melhor resultado?


No livro didático deve constar este método. E os professores, responsáveis por transmitir tal conteúdo, deveriam ser ensinados também, sobre a melhor maneira de cumprir seu papel.


Este seria o trabalho básico de um Ministério da Educação que honrasse este nome. Definir os conteúdos, fazer com que em todo o país cada estudante tivesse a garantia de ter contato com estes conteúdos, considerados fundamentais para formar um aluno.


Do jeito que acontece hoje, a aluna de um colégio do Piauí tem 10 vezes menos chances de atingir um alto nível de vida do que um aluno de um outro colégio de São Paulo. Ou tem 100 vezes menos chances, ou 1000 vezes menos, dependendo da desigualdade de condições que acomete aqueles dois alunos.


Admitir, aceitar, uma tal desigualdade no país, me parece que é a pior coisa que pode fazer o brasileiro. Se somos uma nação, precisamos caminhar juntos, e reconhecer nossa igualdade.


Não estou falando que todos têm a mesma capacidade, ou, para dizer melhor, a mesma aptidão. Se um é grande matemático, outro pode ser um grande médico, um grande enfermeiro, um grande jogador de futebol.


Mas a desigualdade enorme de oportunidades, esta tem de ser combatida, como padrão básico de Justiça.


Para isto o Ministério da Educação, a política do Governo para o ensino, tem de definir os padrões básicos, submetê-los à aprovação de todos. Garantir como direito de todos, a ser cobrado no Judiciário, se preciso for.


O seu filho não pode receber menos que isso. Esta oportunidade. Aprender a ler e a escrever, de um modo adequado. Aprender a fazer as contas. Aprender a História.


Ter acesso a bons livros. Sem a leitura ninguém progride. Ter um mínimo de estrutura familiar à sua volta, e para isso o Governo também deve contribuir, com a assistência social, e seus demais mecanismos.


Mas, não, tudo isto deve ser bom demais para nós, precisamos nos submeter ao “esquema”.





segunda-feira, 16 de maio de 2011

Legião Urbana - Faroeste Caboclo

OSAMA EXECUTADO SEM JULGAMENTO - 2


Das “Máximas e Reflexões” de Epicteto:


Vence teus desejos e teus temores, e terás vencido teus tiranos.


Duas coisas há que devem ser tiradas aos homens: a vaidade e a desconfiança.


Diógenes disse, e muito bem, que o único meio de conquistar a liberdade é estar pronto para a morte.


Esperas ser feliz uma vez que tenhas obtido o que solicitas. Enganas-te; terás as mesmas inquietações, os mesmos cuidados, os mesmos aborrecimentos, os mesmos temores, os mesmos desejos. A felicidade não consiste em adquirir e desfrutar do adquirido, mas em não desejar, porque consiste em ser livre.


Nada temas, e não haverá para ti homem terrível nem formidável, assim como não há cavalo terrível para outro cavalo, nem abelha para outra abelha. Não vês que os teus desejos e temores são a guarda que os tiranos mantêm dentro de ti, como numa fortaleza, para escravizar-te? Expulsa essa guarda, recobra a posse do teu forte, e serás livre.


Recebeste o consulado e és governador de província. Por quem? Por Felício. Asseguro-te que eu não quereria viver, se tivesse de viver pelo prestígio de Felício, e suportar-lhe a soberba e insolência de escravo, porque sei o que é o escravo que se julga feliz e julga cega a sua sorte. – Mas, tu és livre? – Não. Lido por o ser, mas ainda não atingi tão venturoso estado; não me é dado ainda fitar os olhos firme e serenamente nos meus amos; ainda estou agrilhoado ao corpo, e, embora alquebrado, pretendo conservá-lo; confesso a minha fraqueza. Se queres, porém, que te mostre homem verdadeiramente livre, menciono-te Diógenes. – E de que modo chegou a ser livre? – Destruindo, em si, tudo aquilo de que poderia a servidão apossar-se; desligado de tudo, isolado por toda parte, nada possuía; pedíeis-lhe o seu bem-estar, e ele o dava; pedíeis-lhe o pé, dava-o; todo o corpo, dava-o; mas estava fortemente ligado aos deuses e a ninguém cedia em obediência, em respeito, em submissão para com essa soberania. Ali estava a origem da sua liberdade. – Mas, replicas, esse exemplo é o de um único homem, a quem nada ligava ao mundo. – Queres, então, exemplo de homem que não estivesse sozinho? Sócrates tinha mulher e filhos, e não era menos livre que Diógenes, porque, tal qual Diógenes, tudo submetera aos deuses e à obediência devida à lei.


Se quisermos ser verdadeiros filósofos, tratemos antes de fazer que a nossa vontade se ajuste e acomode aos fatos consumados, para estarmos sempre contentes com o que suceder e o que não suceder. Assim, teremos a grande vantagem de jamais deixar de obter o que desejarmos e jamais cair no que motiva os nossos temores. Passaremos a vida com o próximo sem temor nem perturbação, e conservaremos todos os nossos laços naturais, cumprindo perfeitamente o nosso dever de pais, de filhos, de irmãos, de cidadãos, de esposos, de vizinhos, de associados, de magistrados e de súbditos.


Sócrates amava os filhos, mas amava-os como homem livre, e lembrado de que, em primeiro lugar, devia amar os deuses. Assim, jamais proferiu palavra que não fosse digna de homem de bem, nem quando se defendeu perante os juizes, nem quando foi senador, nem quando esteve na guerra. Nós, porém, em tudo achamos pretexto de baixeza e covardia; no filho, na mãe, no irmão. Não obstante, deveríamos não fazer-nos desgraçados por ninguém, e, pelo contrário, fazer de todas as criaturas meios da nossa felicidade, e, principalmente, servidores dos deuses que nos criaram, a fim de sermos venturosos.



Sacode, afinal, o jugo, e, liberto da escravidão, ergue para o céu o teu rosto, dizendo ao teu Deus: "Utilizai-vos de mim como vos pareça melhor. Nenhuma tarefa me será odiosa, se justificar Vossa misericórdia para com os homens".





Alguns artigos na mídia justificaram o assassinato de Osama Bin Laden pela tropa de elite americana, sendo que a base dos argumentos seria uma suposta inexigibilidade de conduta diversa do governo americano, diante da situação concreta.



Leia-se, por exemplo, o artigo de Arthur Dapieve no Segundo Caderno do jornal O Globo, de 13.05.2011: “Bin Laden venceu” http://sergyovitro.blogspot.com/2011/05/bin-laden-venceu-arthur-dapieve.html



Ou o artigo de Merval Pereira “A cabeça de Obama”, e seu complemento, dentro do artigo “Base Rachada”, no Globo dos dias 11 e 12 de maio de 2011: http://gilvanmelo.blogspot.com/2011/05/cabeca-de-obama-merval-pereira.html



e



http://arquivoetc.blogspot.com/2011/05/base-rachada-merval-pereira.html





Todos estes argumentos pareceram muito “realistas” e “pragmáticos”. Osama poderia ter explodido uma bomba, matando a si próprio e também aos soldados que foram capturá-lo. E, se Osama fosse capturado, onde seria julgado? Iria para uma prisão em solo americano? Mas aí os EUA não ficariam mais expostos a um ataque terrorista, a uma tentativa de libertação de Bin Laden? E será que militantes pró-vida fariam protestos contra a pena de morte, como pergunta Dapieve, ironicamente, em seu artigo?



São todas questões muito relevantes, mas é bom lembrar que sempre encontramos questões muito relevantes, e muito racionais, pertinentes, quando se trata de justificar nossos desejos de executar um bode expiatório, ou nossa covardia para fazer frente aos desafios.



E o desafio, aqui, é: enfrentar nossos desejos e nossos temores para não abrir mão dos nossos valores.



Para abrir mão dos nossos valores, é fácil: podemos escrever toda uma teoria, publicar livros, fazer palestras, invocar Rousseau, Fichte e Kant. A propósito, Merval Pereira menciona um jurista alemão, Günter Jakobs, autor de uma teoria do Direito Penal do Inimigo, que faria um contraponto ao Direito Penal do Cidadão, com as garantias clássicas.



Já para manter os valores, as “garantias clássicas”, a liberdade, é bem mais difícil: requer coragem.



Notem que as tiranias estão sempre prontas a invocar horrores, para nos convencer a abrir mão de nossa liberdade. Manipulam nossos temores, nossos desejos de soluções fáceis, e rápidas. Soluções finais.



“Deixem-nos fazer do nosso jeito, ao arrepio da lei, sem respeitar as garantias! É o único jeito! Se tivermos de respeitar as regras não vai dar certo, um grande mal recairá sobre todos!”



Ainda douram a pílula, para tornar mais fácil tragá-la: “não é só a SUA segurança que está em jogo! É a dos seus filhos, das nossas criancinhas, quem vai proteger as criancinhas?”



E a própria covardia vira um ato heróico! Além disso, não é comigo, Cidadão, que vai esquentar a chapa... é sempre com o Outro, o Inimigo, o Terrorista, o Traficante, o Favelado, o Judeu, o Cigano, o Preto, a Bruxa, o Burguês, sei lá mais quem, o Mal Encarnado...



Pode torturar pra obter informação? Pode, os fins justificam os meios. Não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos. Pode simular afogamento, saco plástico na cabeça, Tropa de Elite, uh-uh, pega um, pega geral, Capitão Nascimento, uôu! Também vai pegar você...



Este é o verdadeiro preço da liberdade, da democracia: a coragem. Não a corrupção, não a putaria, não a impunidade.



Os soldados americanos podiam ser mortos caso Osama detonasse uma bomba? Podiam, isto é trabalhar com hipóteses. Podia também acontecer de algum dos seguidores de Osama detonar os explosivos. E podia ser que Osama tivesse um seguidor instalado numa casa vizinha, que detonasse os explosivos quando visse os helicópteros pousando.



São infinitas as possibilidades. E o que fazer para lidar com elas? Quem sabe, jogar um míssil? Jogar uma bomba atômica? Haveria, então, bastante segurança de matar Osama, sem que houvesse baixas entre os soldados americanos.



Um soldado, quando vai cumprir uma missão, sabe que pode ser capturado, sabe que pode ser morto. Claro, não é desejável que isto aconteça, mas os soldados de um Estado livre, soldados que não sejam máquinas, que sejam também homens livres, não podem receber missões de assassinos. Sim, são guerreiros, e vão precisar matar, em legítima defesa, ou quando não houver outro meio.



Parece uma sutileza indiferente, mas não é: é a diferença entre a escravidão e a liberdade. Matar, quando não havia outro meio, e matar, quando havia outro meio.



Porque numa missão, em que o helicóptero entra e sai, em que alguns são capturados, em que alguns são transportados, em que o próprio corpo de Osama é transportado, o objetivo não pode ser a morte de um homem.



O objetivo tem de ser sua captura, e a morte apenas um acidente involuntário. Como eu já disse no primeiro artigo, o ataque tendo sido planejado com antecedência, que se usasse gás, que se usasse um forte tranquilizante, armas de choque, o que fosse, para garantir o melhor possível a segurança dos soldados, mas sem abdicar do objetivo de capturar Osama vivo, para julgamento.



Caso o pior acontecesse, caso Osama se explodisse, explodisse junto os soldados, estes seriam heróis, bravos guerreiros, mortos em combate, pela segurança de seu povo.



E Osama teria morrido como viveu, ou seja, como um criminoso covarde. Que melhor propaganda para a virtude, para a coragem, para o valor?



Do jeito que aconteceu, tudo leva a crer que o objetivo tivesse sido, sempre, o extermínio de Osama, objetivo que, repito, numa operação em que se entra e sai de helicóptero, e em que inclusive se carrega o corpo do inimigo, não poderia ser dado.



Do jeito que aconteceu, com tortura, assassinato, supressão de valores, tudo entra numa zona cinzenta, indistinta, o mocinho e o vilão usando os mesmos métodos. E aí, a propaganda e a vitória são do mal, jamais da virtude.



Também a nação americana precisaria se mostrar valorosa, para aprisionar o inimigo, dar-lhe o julgamento justo e a sentença. Se tivessem de enfrentar um ataque terrorista, que o enfrentassem. Utilizem seus aparatos de defesa, seus agentes policiais, seus soldados, seus controles. Isto é o óbvio, não quero que me confundam com o extremista que prega “flores contra bombas”, ou algo assim.


Defendam-se do mal. Não fabriquem o mal, não pratiquem o mal. Combata o mal com o bem.



Os extremos acabam se tocando, se confundindo. O radical de direita, fazendo chacota dos defensores de direitos humanos, que para eles são todos uns lunáticos que pretendem amarrar e amordaçar a sociedade, entregando-a depois ao punhal do carrasco. E o radical de esquerda, escondido numa Torre de Marfim, achando que o monstro vai embora se fechar os olhos com força.



Estes dois extremistas enxergam, um no outro, como num espelho distorcido, a própria imagem de seus piores fantasmas inconscientes, e se odeiam num ódio de morte.



Estes dois extremistas sequestram todo o debate, enxergando em cada um que se afasta, ou que ousa criticar, os seus preconceitos queridos, a imagem daquele opositor que tanto odeia, que tanto teme, e que inevitavelmente acaba por se tornar.



Então, para que não me confundam, para que não sequestrem o debate, para que o não esterilizem: rejeito qualquer extremo, qualquer sistema pronto, qualquer explicação fácil. São todos meras desculpas para a covardia, para esconder a cabeça na areia, e abrir mão da própria responsabilidade, e, junto, da própria liberdade.



Qual é então o antídoto para o veneno do extremismo, do ideologismo escapista? É aceitar a crítica, aceitar o debate, abrir mão da presunção de que tudo sabe, só porque se tem meia dúzia de fórmulas fáceis na cabeça. Meia dúzia de slogans, de frases feitas. Morte a estes... Morte àqueles...





Dizer como Sócrates, na sua frase famosa, genial: “Tudo que sei é que nada sei”. Paradoxal, sim, mas abracemos o paradoxo. Nós somos paradoxais, homens, anjos e demônios, santos e pecadores.



Abracemos o debate, abracemos o diálogo, a dialética, o questionamento. Não nos satisfaçamos com nossas pequenas certezas.



E, acima de tudo, isto: tenhamos a coragem de descobrir nossos valores, e de defendê-los a todo custo, defendê-los com nossa vida e com nossa alma. Não aceitemos abrir mão deles, qualquer que seja a promessa de facilidades, ou a ameaça de coisas terríveis.



E, acima de tudo, isto: seja fiel a ti mesmo (William Shakespeare, no Hamlet).



E, como estou com a febre das citações, aqui vai mais uma: o segredo da felicidade está na liberdade; e o segredo da liberdade está na coragem (Péricles).



E, visto que comecei este artigo com uma seleção das máximas e reflexões de Epicteto, devo terminá-lo da mesma maneira, abrindo espaço, com reverência, a um pensamento tão sublime, e tão melhor expresso que o meu:



O que perturba os homens não são as coisas, mas as opiniões que delas tem. Por exemplo, a morte não é um mal; pelo menos foi essa a opinião de Sócrates. A idéia que da morte se tem é que dela faz um mal. Quando estamos cabisbaixos, perturbados ou tristes, não acusemos ninguém, a não ser a nós próprios, isto é, às nossas opiniões.



Tens febre, mas se a tens, como deves, tens tudo o que podes ter melhor com ela. Que é ter a febre como se deve? Não queixar-se dos deuses nem dos homens, não alarmar-se com a idéia do que pode acontecer, esperar valorosamente a morte, não regozijar-se excessivamente quando o médico diz que há melhora, e não afligir-se quando diz que se está pior. Pois, que é estar pior? Aproximar-se do termo e do instante em que a alma se há de separar do corpo. Chamas a essa separação um mal? Ainda que a morte não sobrevenha hoje, deixará, por acaso, de vir amanhã? E contigo terminará o mundo? Permanece, pois, tranqüilo tanto na febre como na saúde.



Componho belíssimos e saborosos diálogos e escrevo livros interessantes. – Meu amigo, preferiria que me dissesses que dominava as paixões, que compunhas os desejos, que seguias a verdade nos juízos. Assegura-me que não temes a prisão, nem o desterro, nem a dor, nem a miséria, nem a morte. Sem isso, por belos que sejam os livros que escreves, podes estar certo de que és apenas um ignorante.



Cedo ou tarde, virá necessariamente a morte surpreender-nos. Em que ocupação nos surpreenderá? O lavrador será surpreendido nos cuidados da lavoura; o jardineiro nos do jardim; o comerciante nos do comércio. E tu, em que cuidados serás surpreendido? No que me diz respeito, desejo com toda a alma que o derradeiro instante me encontre atarefado em governar a vontade, a fim de que, sem turbação, nem obstáculo, nem temor, possa morrer como homem livre, dizendo aos deuses: violei, acaso, os vossos mandamentos? Terei abusado dos dons que me outorgaste? Não vos submeti os meus sentidos, as minhas faculdades, as minhas opiniões? Queixei-me de vós? Acusei a vossa Providência? Estive doente, porque assim o quisestes vós e eu também o quis. Fui pobre, porque tal foi a vossa vontade, e permaneci contente na pobreza. Fiquei na miséria, porque quisestes que eu seja miserável, e dela não desejei sair. Vistes-me triste pelo meu estado? Surpreendestes-me no abatimento e na queixa? Agora mesmo estou pronto a fazer o que vos aprouver mandar-me. O menor sinal de vossa parte é para mim uma ordem inviolável. Quereis que abandone este magnífico espetáculo? Abandoná-lo-ei e vos apresentarei os meus humildes agradecimentos por vos terdes dignado admitir-me a ele, por me haverdes feito ver todas as vossas obras e apresentado aos meus olhos a admirável ordem com a qual dirigis o universo.



Quando fores consultar o adivinho, lembra-te de que ignoras o que deve suceder, e que vais sabê-lo. Mas lembra-te ao mesmo tempo que, se fores filósofo, vais consultá-lo, muito bem sabendo de que natureza é o que deve suceder; porque se for coisa que de nós não dependa não poderá ser seguramente nem um bem nem um mal para ti. Não leves, pois, contigo, ao adivinho, inclinação ou aversão por coisa nenhuma; de outro modo, tremerás sempre; persuade-te, pelo contrário, e convence-te de que tudo quanto suceder será indiferente, não te dirá respeito, e que de qualquer natureza que seja, de ti depende fazer dele bom uso, sem que ninguém consiga impedir-to. Vai, pois, com confiança, como quem se aproxima de deuses que se dignam aconselhar e, ademais, quando te houverem sido dados alguns conselhos, lembra-te do que são os conselheiros aos quais recorreste, e que a tua desobediência será menosprezo das suas ordens. Não vás ao oráculo se não como Sócrates queria se fosse, isto é, não vás senão para as coisas que só podem ser conhecidas pelo acaso, e não podem ser previstas nem pela razão nem pelas regras de qualquer arte. Assim, quando se te deparar oportunidade de te expores a grandes perigos pelo amigo ou pela pátria, não vás consultar o adivinho se tiveres de fazê-lo, porque se te declarar que são más as entranhas das vítimas, serás evidente que o sinal te pressagia a morte, os ferimentos ou o desterro; afirma-te, porém, a razão, em que pese a todas essas coisas, que deves socorrer o amigo e expor-te pela pátria. Apolo Pitiano atirava para fora do seu templo quem, vendo em perigo de morte o amigo, o não ajudava.



Suponho que homem livre é aquele a quem tudo sucede como deseja, disse-me um louco, quero que me suceda tudo quanto me aprouver. Meu amigo, jamais andam juntas a loucura e a liberdade. A liberdade não é uma coisa somente belíssima, senão também racional, e não há nada mais absurdo nem mais irracional que desejar temerariamente e pretender que as coisas se verifiquem do modo pelo qual as pensamos. Quando tenho de escrever o nome próprio Díon, devo escrevê-lo não como me agradaria, mas tal qual é, sem a mudança de uma única letra. Sucede o mesmo em todas as artes e ciências. E queres que na maior e mais importante de todas as coisas, como é a liberdade, impere o capricho e a imaginação? Não, meu amigo, a liberdade consiste em querer que as coisas sucedam não como as desejamos, mas como são.



Até quando diferirás julgar-te digno de grandes feitos e por-te em estado de jamais ferir a reta razão? Recebeste os preceitos aos quais deverias dar o teu consentimento. Deste-o. Por que, pois, postergar a emenda? Não és uma criança, e sim homem feito. Se te descuidares, se te distraíres, se abrigares resolução e mais resolução, se todos os dias assinalares um novo em que haverás de prestar atenção a ti próprio, sucederá finalmente que, sem o perceberes, não terás realizado nenhum progresso, e perseverarás eternamente na ignorância. Valor, portanto; julga-te digno, desde hoje, de viver como homem, e como homem que já realizou alguns progressos na sabedoria; que tudo quanto se te afigure bom e belo seja para ti lei inviolável. Se se te oferecer algo de penoso ou agradável, de glorioso ou vergonhoso, lembra-te de que a luta está aberta, que os jogos olímpicos te chamam, que não convém postergar, e sim, pelo contrário, levar a caba, e enfim que, de um momento a outro de um único ato de valor ou de covardia depende a tua salvação ou a tua perda. Não foi de outro modo que logrou Sócrates chegar à perfeição fazendo com que todas as coisas servissem ao seu fim, e seguindo constantemente a razão. Quanto a ti, embora não sejas Sócrates, deves viver como se tivesses de o ser um dia.


Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade dos deuses é superior à minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos.


Todos tememos pelo destino do corpo, e na alma ninguém pensa.


De ti depende fazer bom uso de tudo o que se verifica. Não digas, pois: que sucederá? Que te importa o que possa suceder, se de tudo és capaz de tirar proveito, se de tudo podes fazer bom uso, e qualquer coisa que se realize pode chegar a ser para ti felicidade enorme? Se aos olhos se te apresenta medonha fera, ou tens que sustentar um feroz combate contra homens implacáveis e terríveis, de que te afliges? Se te antolha uma fera, o combate é maior e mais glorioso. Se pelo caminho encontrares homens prodigiosos e intratáveis, terás maior mérito se conseguires, ao vencê-los, livrar deles o mundo. E se eu morrer? Se morreres, morrerás como herói. Que mais podes desejar?



Não te esqueças das palavras de Sócrates: "Críton, sigamos corajosamente a senda pela qual nos conduzem os deuses, e nos chamam. Anito e Melito podem matar-me, mas não podem fazer-me morrer".





P.S. Para notícia biográfica, e o texto completo das “Máximas e Reflexões” de Epicteto, segue um link da internet:

http://pt.scribd.com/doc/36546617/Maximas-de-EPICTETO