
“Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não aceita mais conselho.
Mesmo que o jovem tenha saído da prisão para reinar, e ainda que tenha nascido mendigo no reino.
Eu vi todos os que se movem debaixo do sol ficarem com o jovem que sucedeu ao velho rei,
e que passou a liderar imensa multidão. Contudo, aqueles que vierem depois, não ficarão contentes com ele.
Também isso é fugaz e uma corrida atrás do vento.”
Eclesiastes, 4, 13-16
“A polis é o homem em escala ampliada”.
Platão, República, 368 c-d
Usando o exemplo dos gregos, Voegelin defende, em páginas inspiradas, a verdade “teórica”, capaz de se contrapor à tradicional verdade imperial, ou lei do mais forte.
“O teórico é o representante da nova verdade, que rivaliza com a verdade representada pela sociedade”; mas “uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência (...).”
Ou seja: o sentido da existência, para uma teoria, é tudo submeter à lei do mais forte. Para a outra
teoria, é tudo submeter à lei da Justiça, tanto quanto se possa divisar esta Justiça transcendental, em nossas leis imperfeitas.
Voegelin invoca Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Menciona Sólon, menciona Parmênides. Mas é no trágico Ésquilo, e sua peça As Suplicantes, já comentada, que Voegelin vai resumir a nova verdade teórica, conforme aplicada à política: o rei mergulha nas profundezas de sua alma para conhecer Dike, na mitologia grega a deusa da Justiça. Após, o rei reúne o povo e submete o caso “à Assembléia geral, Koinon, a fim de persuadir seus membros a concordar com a decisão a que chegara em sua alma. (...) o povo (...) segue o mergulho do rei na profundidade da alma. O Peitho, a persuasão do rei, forma as lamas de seus ouvintes, que estão dispostos a deixar-se formar, e faz que a Dike de Zeus prevaleça sobre a paixão, de tal maneira que a decisão madura representa a verdade do deus. O coro resume o significado desse fato com a linha: “É Zeus quem faz o fim acontecer”.”
Remeto o leitor às páginas de Voegelin, pois não é possível transcrever todas as suas linhas, muito interessantes, sobre a criação, pelos filósofos gregos, em especial Platão e Aristóteles, desta verdade teórica nova, ilustrada pela tragédia de Ésquilo. Posso, aqui, apenas fazer algumas indicações gerais do argumento de Voegelin.
Voegelin relaciona a busca filosófica pela natureza verdadeira de Deus com a elaboração da nova teoria política. “Platão absorveu a crítica feita por Xenofane à simbolização imprópria dos deuses. “Enquanto os homens criarem deuses à sua própria imagem”, argumentava Xenofane, “a verdadeira natureza do Deus único, “o maior entre os deuses e homens, e diferente dos mortais em corpo e pensamento” terá de permanecer oculta; e somente quando Deus for o único compreendido em sua transcendência informe como o mesmo Deus de todos os homens, a natureza de todos os homens será compreendida como uma coisa única, por ser idêntica a relação de cada um deles com a divindade transcendente. Dentre todos os pensadores gregos primitivos, Xenofane talvez tenha sido o que com mais clareza percebeu a idéia universal do homem por meio da experiência da transcendência universal.”
Ou seja: a igualdade de todos os homens, definida pela igualdade da relação de cada um dos homens com a divindade transcendente. Nenhum homem pode dizer: “eu tenho uma relação especial com Deus, eu represento a Sua vontade na Terra”. Todos os homens são mortais, limitados a este mundo. Ou algum homem já ressuscitou?
Se você não ressuscitou, seja você um grande Khan, seja você Nietsche, um super-homem, seja você Stalin, um homem de aço, você não tem uma relação privilegiada com Deus que te faça diferente de mim. Você pode ter uma relação privilegiada com o poder, com a força. Mas quem disse que a natureza de Deus é o poder, é a força?
Isto quem diz é a teoria antiga, teoria do império. A força e o poder podem estar com você hoje, amanhã pode não estar. A existência é uma Roda, temos visto. Numa coisa o escriba mongol estava certo: “Deus o saberá.”. O amanhã não pertence ao homem.
Concordo com a teoria nova, portanto. A relação dos homens com a divindade transcendente é igual, sejamos iguais, politicamente, portanto. Vamos refletir esta igualdade, em nossos pensamentos, em nossas práticas, em nosso ser, para ficarmos em harmonia com esta relação do homem com a divindade.
Voltemos a Voegelin:
“A verdade do homem e a verdade de Deus são uma só coisa, una e inseparável. O homem viverá a verdade de sua existência quando abrir sua psique à verdade de Deus; e a verdade de Deus tornar-se-á manifesta na história quando houver moldado a psique do homem para se fazer receptiva à medida invisível. Esse é o grande tema da República ; no âmago do diálogo, Platão colocou a parábola da caverna, com sua descrição da periagoge, a conversão, o ponto de inflexão a partir do qual a inverdade da existência humana, tal como prevalecia na sociedade sofista ateniense, é superada pela verdade da Idéia. Platão compreendeu, ademais, que a melhor maneira de assegurar a verdade da existência era a educação adequada desde a primeira infância; por essa razão, no segundo livro da República, ele quis eliminar da educação dos jovens as simbolizações impróprias dos deuses, tais como eram propagadas pelos poetas, e substituí-las por símbolos adequados”.
(...)“ Se, durante a juventude, a alma for exposta ao tipo errado de teologia, ficará deformada em seu centro decisivo, no qual se forma o conhecimento da natureza de Deus; a alma se tornará presa da “arqui-mentira”, o alethos pseudos, que é a concepção errônea dos deuses. (...) na interpretação teórica da sociedade o princípio antropológico requer o princípio teológico como seu correlato. A validade dos padrões desenvolvidos por Platão e Aristóteles depende da concepção de um homem que pode ser a medida da sociedade porque Deus é a medida da sua alma”.
Importa, portanto, definir a natureza de Deus. Deus trata desigualmente os homens? Ou Ele derrama o seu sol, faz cair sua chuva, sobre justos e injustos, ricos e pobres, fortes e fracos?
Se a relação de Deus com todos os homens é esta igualdade na transcendência, se os homens todos morrem, se nenhum ressuscita, por que é que alguns de nós se consideram “iluminados”, com acesso a uma relação privilegiada com o divino, detentores de alguma verdade, de algum poder especial, super-homens, ou coisa que o valha? Por que consideram que, por terem mais dinheiro, ou por serem mais fortes, ou por terem mais poder, ou por serem mais inteligentes, têm uma especial relação com Deus? Ao que me consta, o único que ressuscitou rejeitou os reinos do mundo...
Um delírio, por certo, mas que não deixa de ter abrigo em todos nós, e que não deixa de arrastar milhões a abismos, ao longo da História. Sim, vencem as guerras, impõem o seu poder, escravizam muitos povos. Mas ao fazê-lo, não podem reproduzir a Justiça do Deus único, sua igualdade, na transcendência, perante todos os homens.
E por isso a teoria do império, a teoria da desigualdade entre os homens, é uma “arqui-mentira”, e não pode se sustentar. A teoria nova, que desafia a antiga, procura reproduzir, nas relações dos homens, a igualdade que preside a relação do humano com o divino.
Neste sentido, Platão concebe a fórmula “Deus é a medida de todas as coisas”, em oposição à famosa definição de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”. É preciso conhecer a verdadeira natureza da divindade, da sua relação com o homem, para conhecer a medida de tudo. Esta relação, está visto, é de igualdade.
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