Eric Voegelin descreve uma linha característica na transformação do mundo na Idade Moderna: um desejo de realizar o Paraíso, o Mundo Melhor, o Reino da Justiça, o Reino da Fantasia e do Sonho, neste nosso mundo da Realidade. O Vale das Lágrimas. O Reino dos Acasos, acasos os mais terríveis.
Voegelin nomeia gnosticismo este pensamento, um pensamento que ganhou rapidamente ascendência sobre, hoje, literalmente o mundo inteiro, globalizado.
Como um vírus que se propagou e infestou as mentes. Cujo foco, na sua encarnação moderna, foi a Europa do século IX. Criou uma ilusão da mente, que passou a confundir Desejo com Realidade. No paradigma de pensamento que dominava, anteriormente, havia uma nítida distinção entre estas duas esferas, sintetizada pela interpretação de Santo Agostinho na distinção radical entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.
O Reino de Deus é uma inspiração para o Reino dos Homens. Nunca uma sobreposição, uma confusão. Conjuntos distintos.
Para o que já havia precedentes bíblicos: “Meu Reino não é deste mundo”; “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”; “Eu vim do Alto, para falar coisas do Alto”, e outras falas de Jesus.
Mas, como explica Voegelin, a inclusão do Apocalipse de São João no cânone bíblico gerou disputas acirradas sobre a possibilidade de realizar o Reino na História. Na verdade, ele permanece uma influência para o gnosticismo, que lhe arremeda as cenas na tentativa de reproduzi-lo: os revolucionários sonham com a escatologia do Juízo Final, o grande expurgo que separará enfim santos e impuros, inaugurando o fim do Conflito.
Agostinho, porém, rejeitou incisivamente tal interpretação literal e fundamentalista. Qualificou de “fábulas ridículas” aquelas que alguns crentes sonhavam enxergar na Realidade: Besta, e números, e dragão, e Grande Prostituta, e Satã, e Anjos com Trombetas, e coro de Santos. Imagens nitidamente de sonhos, e em que Deus cumpriria sua promessa de vencer o Mal.
Imagens de sonho, do inconsciente, do abstrato, da eternidade. Não é deste mundo em que acordados caminhamos, comemos, amamos. Este mundo com que temos de lidar, resolver problemas, trabalhar.
Esta a nítida distinção de Agostinho. Dois Reinos.
Pois, como se dizia, o gnosticismo veio contestar este paradigma de pensamento. Buscar o predomínio de uma outra noção, que durante o período em que prevaleceu o pensamento de Santo Agostinho, ficou reduzido a nichos, por vezes rigorosamente combatidos, como heresias.
Mas, a partir do século IX, passou a recobrar força, com a própria mudança de condições decorrentes do início do fim da idade Média. Este pensamento gnóstico, que combatia o pensamento que se lhe opunha. Que revidava a seus argumentos.
Voegelin explica que o fundamento do pensamento anterior era a fé, na sua definição por São Paulo: acreditar em coisas que não se pode comprovar. Não sendo a fé suficiente, o homem vai buscar um vínculo mais forte com sua Esperança. Ele desconfia que será enganado, que será um tolo por esperar, que perderá o seu Bem, o objeto de sua Esperança, se não agir.
A fé é um vínculo imaterial. Mas o que deseja um vínculo material ligando a si o seu Desejo, vai buscar criá-lo. Através da matéria, através da Ciência, através do Dinheiro, através do Poder. De alguma maneira material, que atue neste mundo, que se possa ver.
Justamente, o termo “gnosticismo” provém do grego “gnose”, conhecimento. Como atitude mental, sempre existiu, embora na modernidade é que tenha adquirido prevalência. Trata-se, na origem, de uma pretensão de abarcar a Deus com o conhecimento, ou a razão, ou seja, com algum dos recursos do homem.
Voegelin destaca que não apenas a razão foi apontada como capaz de abarcar a Deus. Também a vontade, ou a emoção, possibilitariam a algum dos aspectos do humano, abarcar, ou conquistar, o divino. Enquanto a tradição dizia que “a sabedoria do homem é loucura para Deus”.
Os homens modernos não queriam mais esperar, não queriam ter fé. Desconfiavam dos que lhe vinham falar de fé, adivinhavam-lhes segundas e terceiras intenções. Debochavam, desprezavam, perseguiam. Sacrificavam, no altar do Progresso. Do Domínio. Do Sucesso.
Não mais precisariam esperar, ou confiar a Deus a realização do seu Desejo. Poderiam conquistá-lo, por força própria.
Politicamente, tal pensamento desembocou nas Grandes Soluções, ou nas Soluções Finais, de alguns “iluminados”.
Pessoas que acreditavam que possuíam um saber superior, uma chave para a História.
Estes, que se sentiam assim, e que se faziam ativistas, visavam a derrubada e a substituição radical do mundo e do homem que conheciam.
O Governo estava todo errado! Mas também, pudera: se a sociedade está toda errada! Mas, também, pudera: se o homem está todo errado!
O homem, o mundo, o governo “certo”, é aquele que trago na minha cabeça. Este é o Reino de Deus e da Justiça. Mas eu não preciso esperar por algum duvidoso além para realizá-lo. Não, não, eu mesmo posso fazer parte da milícia dos anjos, e trazer este Reino de Deus para este reino dos homens. Eu tenho os meios! Eu tenho a ciência! Eu tenho o dinheiro! Eu tenho o poder! Eu tenho as massas! Eu tenho a sabedoria!
Este o homem moderno, na sua faceta política e ativista. Este o gnóstico moderno, diagnosticado por Voegelin.
“Vamos purificar a raça”. “Vamos acabar com as classes sociais”. “Vamos acabar com a propriedade individual”. O gnóstico tem uma pretensa “chave da História”, para “resolvê-la”, para transformá-la. O Mundo da História, do Real, se transformando no Mundo daquele Paraíso que o gnóstico traz na mente, e que ele pensa que vai ser o Paraíso “objetivo”, para todos. Claro que os resistentes serão atirados numa fogueira, mas só por resistirem ao Paraíso que eu, magnânimo, lhes quero dar, já mostra que são do diabo. Aqueles que compartilham da sua crença são os santos, os redentores do homem. O grupo dos eleitos. Os que não compartilham, como já disse, são do diabo. Na melhor das hipóteses, uns iludidos do diabo, esperando para enxergar a luz que trazemos.
Os exemplos estão pela História moderna, as guerras, os campos de reeducação e extermínio, as desapropriações em massa, os grandes expurgos, etc. etc. “Pelos frutos os conhecereis”, mas a força da ilusão é imensa: sempre tem uma explicação, sempre tem um argumento.
Tinha de ser mais radical! Matou dez milhões, matou cem milhões, e não resolveu? É porque foi pouco. Se matasse 1 bilhão, talvez resolvesse. Se matasse dez bilhões, se matasse TODOS, aí, sim, certamente resolveria...
Argumento de louco? Sem dúvida, mas este é o ponto...
O gnosticismo é loucura, e contra a loucura de que valem os argumentos?
Não diferenciar desejo de realidade, não diferenciar estar sonhando ou estar acordado... loucura, pura e simples, mas que pode assumir muitas formas.
Uma criança logo aprende que não pode sair voando pelos ares, para transpor os obstáculos.
Mas por certo que todos nós fantasiamos, que todos nós sonhamos, que todos nós temos nossas aspirações e desejos. Ou não seríamos humanos.
Mas pode se desenvolver um estado patológico, desencadeado por muitos fatores, em que nossos sonhos e desejos podem crescer desproporcionalmente, e tomarem conta de nós.
Pode ser um refúgio, mas podemos nos perder dentro deles, como num labirinto, talvez para nunca mais achar a saída.
Uma questão de equilíbrio, como queriam os antigos: nem só cabeça; nem só coração. Nem só matéria; nem só desejo. Humano, por inteiro.
E este seria o equilíbrio rompido, quando se busca a sobreposição do Reino de Deus com o Reino dos Homens, do Absoluto com o Relativo, do Histórico com a Eternidade. Do Sonho com a Realidade.
Onde havia dois, deseja-se que exista apenas um: um Reino, misturando o Real e o Sonho, Deus e os Homens.
Heresia! Blasfêmia! Soberba! Loucura! - gritariam os Padres da Igreja. Mas que passou a caracterizar o pensamento dominante, com a passagem à idade Moderna. Em alguns lugares, desembocou com a força de revoluções, e em orgias de sangue: guilhotinas, campos de concentração, de reeducação e extermínio. Os “Santos” no Poder, os “Incorruptíveis”...
Em outros lugares, assumiu outros aspectos: palavras de ordem, discursos, propaganda, romantismo, manifestos... seriam os “progressistas idealistas”, prevalecentes nas democracias ocidentais, como Voegelin os chama, em oposição aos ativistas.
Aqueles se contentam com a inação, com o refúgio nos seus bons desejos e esperanças. Estes partem para o ataque, valendo-se de todos os meios para atingir o seu fim: o exercício do poder sem peias.
Dois tipos de gnósticos, um mesmo mal os unindo: a recusa, ou impossibilidade, de separar desejo e realidade. Pode ser que os “progressistas idealistas” representem o aspecto “benigno” da doença psíquica. Como diz Voegelin, os ativistas representam o perigo iminente.
Mas é claro um tipo de gnosticismo só é “benigno”, em comparação com o outro, mais virulento. Como existe o tumor maligno e o tumor benigno. Só que em comparação com a saúde, nenhum tumor é “benigno”.
Os ativistas, inclusive, se valem da inação, ou da cumplicidade, dos “progressistas idealistas” para triunfar. Depois, podem até mandar para o paredón ou para a fogueira muitos dos “progressistas idealistas”. Mas até assumirem o poder vão ter um firme apoio nos seus companheiros gnósticos.
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